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Uma família ingleza: Scenas da vida do Porto

Uma família ingleza: Scenas da vida do Porto

Júlio Dinis

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Uma família ingleza: Scenas da vida do Porto by Júlio Dinis

Chapter 1 ESPECIE DE PROLOGO, EM QUE SE FAZ UMA APRESENTA O AO LEITOR

Entre os subditos da rainha Victoria, residentes no Porto, ao principiar a segunda metade do seculo dezenove, nenhum havia mais bemquisto e mais obsequiado, e poucos se apontavam como mais fleugmaticos e genuinamente inglezes, do que Mr. Richard Whitestone.

Por tal nome era em toda a cidade conhecido um abastado negociante de fino tacto commercial e genio emprehendedor, cujo credito nas primeiras pra?as da Europa e da America, e com especialidade nos vastos emporios da Gran-Bretanha, se firmava em bases de uma solidez superabundantemente provada.

Nos livros de registro do Bank of England, bem como nos de alguns Joint-Stock banks e dos banqueiros particulares da City ou de West-End, podia-se procurar com exito documentos justificativos d'este credito florescente.

N?o era Mr. Richard homem para seguir sómente caminhos batidos, nem para empallidecer ao abalan?ar-se em veredas n?o arroteadas, onde se achava a sós com os seus esfor?os e tenacidade.

Por vezes arriscára capitaes a inaugurar companhias, a plantar novos ramos de commercio, a auxiliar industrias nascentes, aventurando assim proveitosos exemplos, para serem seguidos depois, já com melhores garantias de lucro, por seus collegas, caracteres em geral cautelosos e positivos e sempre desconfiados a respeito de innova??es.

Apesar d'isso, as crises, essas derruidoras tempestades t?o frequentes na vida do commercio, tinham passado por cima da casa Whitestone, respeitando-a. Através das nuvens negras, que tantas vezes assombram o mundo monetario, vira-se sempre brilhar a firma do honrado Mr. Richard, com o esplendor tradicional; emquanto que n?o sorriram fados t?o propicios ás de muitos meticulosos e precatados, n?o obstante egoistas absten??es.

Era o caso de mais uma vez repetir o Audaces fortuna… de já estafada memoria.

Esta immunidade, em parte devida á lucida intelligencia, com a qual Mr. Richard sabia superintender nos variados negocios do seu tracto, em parte a n?o sei que benigno espirito, ou acaso feliz, a que muitas vezes parece andar subordinada a fortuna, valera-lhe uma illimitada confian?a entre todos, com quem o negocio o ligava, confian?a da qual, nem em circumstancias frivolas, se mostrou nunca indigno depositario.

O quotidiano apparecimento do negociante estrangeiro na Pra?a-nome que entre nós se dá ainda á rua dos Inglezes, principal centro de transac??es do alto commercio portuense-festejavam-o benevolentes sorrisos, rasgadas e pressurosas reverencias, phrases de insinuante amabilidade e affectuosos shake-hands, segundo o mais ou menos adiantado grau de familiaridade, que cada qual mantinha com elle.

Ninguem se dispensava de qualquer d'estas demonstra??es de estima, ou as impozesse o prestigio dos avultados capitaes e da social liberalidade do commerciante britannico, ou-como de preferencia opinar?o os que melhor conceito formam dos homens-um longo passado sem mancha, uma rectid?o e cavalheirismo, aquilatados todos os dias.

Mr. Whitestone n?o se deixava porém desvanecer com estas homenagens dos seus confrades, aliás merecidas.

Decididamente n?o era a vaidade o seu defeito dominante. Aspirando essa especie de incenso moral, que t?o bem formadas cabe?as atord?a, n?o sentia, no intimo, turbar-se a limpidez, verdadeiramente crystallina, da raz?o, n'elle pouco sujeita a esva?mentos.

Os gêlos d'aquelle cora??o, formado e desenvolvido a cincoenta e um graus de latitude septentrional, n?o se fundiam com t?o pouco.

L?as, hymnos encomiasticos, capazes, ainda que em prosa, de atemorisar as modestias menos esquivas, protestos hyperbolicos de venera??o a todo o transe, tudo isso escutava friamente e sem nem sequer experimentar certa agradavel e voluptuosa titilla??o da alma-se me admittem a phrase-que em quasi todos os filhos de Eva,-primeira e mal estreiada victima da lisonja-produzem sempre os panegyricos do merecimento proprio, entoados por b?cas alheias.

A mesma indifferen?a, a mesma, se n?o absoluta impassibilidade, estabilidade de raz?o pelo menos, com que, uns após outros, esvasiava copos de cerveja e calices do Porto e Madeira, de rhum, de cognac, de kummel, de gingerbeer, e até de absintho, liba??es, que a qualquer pessoa menos inglezmente organisada amea?ariam, em pouco tempo, com as mais pavorosas consequencias de um completo alcoolismo; essa mesma indifferen?a e impassibilidade oppunha ao effeito, n?o menos inebriante, das lisonjas de que lhe enchiam os ouvidos.

A eloquencia cortez? dos seus muitos enthusiastas mais do que uma vez a recebia assobiando distrahidamente, mas sem a menor affecta??o, o nacional God save the queen, ao qual marcava compasso com a cabe?a ou com a bengala.

N?o se dava ao trabalho de retribuir um cumprimento com outro cumprimento. Aquelles que teem por costume semeiar lisonjas, para depois as colherem, em proveito proprio, encontravam em Mr. Richard Whitestone terreno ingrato para tal genero de cultura; n?o vingavam lá.

A chamar-se delicadeza a certos requebros de linguagem, a certas subtilezas de galanteios, a certos meneios, ares e olhares convencionaes, muito á moda nas salas e que variam com as épocas, hesitar-se-hia em conceder a Mr. Richard o nome de delicado.

A delicadeza que elle praticava n?o era de facto essa. Fazia-a consistir toda, a sua, nos sentimentos e nas ac??es inspiradas pelos eternos e invariaveis dictames da consciencia e da raz?o, superiores portanto ás fluctua??es caprichosas da moda. Era uma delicadeza natural.

Verdadeiro inglez da velha Inglaterra, sincero, franco, ás vezes rude, mas nunca mesquinho e vil, podia tomar-se por uma vigorosa personifica??o do typico John Bull.

Alheio e pouco propenso á metaphysica, n?o o namoravam as transcendentes quest?es de philosophia, que preoccupam doentiamente as intelligencias da época; todo votado á contempla??o da face positiva da vida, se n?o se arroubava, como os exaltados optimistas, a considerar nos destinos futuros da humanidade, evitava tambem o estorcer-se nas garras do demonio da hypocondria, como se estorcem tantos, a quem prolongadas medita??es sobre os males que perseguem o homem acabam por envenenar o pensamento.

Possuia em compensa??o Mr. Richard, e em alto grau, para luctar contra as occorrentes resistencias da vida effectiva, aquella qualidade de espirito, que, segundo Sterne, se diz obstina??o nas más applica??es e perseveran?a nas boas.

Outra apreciavel disposi??o de animo caracterisava ainda o nosso commerciante:-era a de n?o ser sujeito a longas mortifica??es, ou pelo menos-e com mais rigor talvez-a de n?o as manifestar nos gestos ou por quaesquer signaes exteriores.

Dir-se-hia, a julgal-o pelas apparencias, que espessa camada de estoicismo lhe encrustára o cora??o, libertando-o da influencia dos estimulos, que mais dolorosamente costumam commover essa viscera de t?o numerosas sympathias.

N'este mundo, ao qual os Heraclitos dos seculos christ?os grangearam o titulo lutuoso e elegiaco de Valle de lagrimas, n?o sabia successo possivel, catastrophe realisavel, com for?a de alterar por muito tempo a costumada express?o physionomica de Mr. Richard, de lhe desbotar sequer o colorido vigoroso, ou,-como julgo se lhe chama em linguagem technica,-o colorido quente, do qual lhe vinha ao gesto certo ar de satisfa??o, despertador das mais justificadas invejas.

Nos typos inglezes, que as ondas do oceano arrojam todos os dias ás nossas praias, é este phenomeno mais vulgar do que porventura se pensa.

Cada uma d'essas figuras britannicas vale por um protesto mudo, mas eloquente, contra os velhos preconceitos de poetas e de escriptores meridionaes.

Teimam de facto estes em que s?o indispensaveis os vividos raios do nosso desanuviado sol, ou a face desassombrada da lua no firmamento peninsular, onde n?o tem, como a de Londres-a romper a custo um plumbeo céo-para verterem alegrias na alma e mandarem aos semblantes o reflexo d'ellas; imaginam fatalmente perseguidos de spleen, irremediavelmente lugubres e soturnos, como se a cada momento saíssem das galerias subterraneas de uma mina de pit-coul, os nossos alliados inglezes.

Como se enganam ou como pretendem enganar-nos!

é esta uma illus?o ou má fé, contra a qual ha muito reclama debalde a indelevel e accentuada express?o de beatitude, que transluz no rosto illuminado dos homens de além da Mancha, os quaes parece caminharem entre nós, envolvidos em densa atmosphera de perenne contentamento, satisfeitos do mundo, satisfeitos dos homens e, muito especialmente, satisfeitos de si.

Nem é para admirar que o romancista inglez James ousasse abrir o primeiro capitulo de um romance seu com a seguinte exclama??o:

?Merry England! Oh, merry England!? Alegre Inglaterra! oh! alegre Inglaterra!

E por que se n?o ha de chamar alegre á Inglaterra? Como se generalisou a infundada cren?a de que o inglez é por for?a melancolico?

é uma d'estas abus?es, para lhe n?o dar nome peior, contra as quaes ninguem se precavê com sufficiente criterio philosophico.

Repare o leitor imparcial para qualquer dos membros da colonia ingleza, á qual Mr. Richard Whitestone pertencia, e verá que nem só nos tempos em que a civilisa??o e a industria n?o tinham ainda arroteado as densas florestas britannicas, seria cabido o jovial estribilho da can??o que o supracitado romancista p?z na b?ca do legendario Robin Hood, seu heroe:-?Ho, merry England, merry England, ho?; póde ainda cantar, através dos nevoeiros e do fumo das fabricas, o inglez moderno, fiel depositario d'aquelle folgado caracter nacional.

Eu tenho ha muito como ponto de fé, que ainda que o spleen seja doen?a indigena da Gran-Bretanha, n?o domina t?o fatalmente sob o céo Londrino, como muitos parece imaginarem.

Dryden affirma que as comedias inglezas possuem sobre as de todo o mundo incontestavel superioridade.

E querem saber a que attribuem alguns esta superioridade da comedia ingleza? Ao clima, a esse mesmo clima, que, em contrario, tantos accusam de fomentador de hypocondrias e suicidios.

O clima inconstante da Inglaterra, explicam aquelles, é proprio para favorecer o desenvolvimento d'esses caracteres excepcionaes e extravagantes, precioso e inesgotavel pábulo do espirito comico da Gran-Bretanha.-A jovialidade dá-se muito bem n'aquelle poderoso imperio.

Tom Jones e o proprio Falstaff s?o typos mais inglezes talvez do que uns sombrios caracteres, que Byron p?z á moda.

Ora Mr. Richard, o corajoso leitor do Times, o inimigo declarado da Fran?a, apesar de certa seriedade de conven??o, era metal inglez, livre de toda a liga.

Nos maiores empertigamentos, a que o respeito pela pragmatica ingleza o constrangia, lá lhe estava o gesto a denunciar, que era artificial tudo aquillo.

Emquanto ao physico…, emquanto ao physico era Mr. Whitestone caracterisadamente inglez.

N?o supprir?o estas palavras mais circumstanciada descrip??o?

N?o ha entre nós quem, ao ver por ahi, nos maiores e mais mesclados ajuntamentos, certa ordem de typos masculinos, hesite em attribuir-lhes por patria a velha Albyon, a filha dos nevoeiros, a rainha dos mares, a terra dos meetings, dos puddings e de muitas cousas mais?

Pois bem, todos esses caracteres, todos esses signaes distinctivos dos mais perfeitos exemplares da classe, achavam-se reunidos na pessoa de Mr. Richard Whitestone, como certid?o de naturalidade, limpa da menor vicia??o.

Era aquella conhecida tez, quasi c?r de tijolo; aquelles olhos azues, á flor do rosto, a resplandecerem como saphiras; aquelles cabellos e suissas ruivas, que, sem grande violencia de imagem, poder-se-hia talvez comparar ás lavaredas do fogo, que lhe inflammava constantemente as faces injectadas; os dentes regulares, como enfiaduras de perolas, e alvos, como os caramélos das montanhas; a postura erecta; os movimentos promptos, e no rosto o tal continuado ar de satisfa??o.

Do vestuario podia dizer-se quasi o mesmo.-N?o falseava o typo. Era ainda inglez de lei.

Um pequeno fraque de panno azul, fabricado nas melhores officinas de Yorkshire ou do West of England; as cal?as, curtas e estreitas, dentro das quaes as descarnadas tibias podiam fazer o effeito do embolo em corpo de pneumatica; as botas esguias e compridas, onde a elegancia era sacrificada á solidez; gravata e collete alvissimos, como os de um lord do parlamento, e, de inverno, vestidura completa de gutta-percha que, n'estas épocas utilitarias e prosaicas, veio substituir as impenetraveis armaduras da idade média-taes eram as pe?as principaes do guarda-roupa do honrado negociante. Coroava finalmente tudo isto o chapéo, aquelle chapéo de fórma invariavel, castello roqueiro inaccessivel ás ondas destruidoras da moda; baluarte inabalavel no meio dos ventos encontrados dos humanos caprichos; o chapéo, cujo molde classico dá a um grupo de inglezes um aspecto, que é só d'elles; o chapéo, express?o symbolica da indole industrial e fabril da famosa ilha, pois desperta lembran?as das chaminés, que ouri?am o panorama das suas mais manufactureiras cidades.

Respirando, havia mais de vinte annos, a atmosphera perfumada do nosso clima meridional, e bebendo, em todo este tempo, da propria fonte o predilecto das mesas britannicas, o genuino Portwine-esse nectar, cujo aroma, ainda mais que os da nossa atmosphera, é grato ás pituitarias inglezas, Mr. Richard Whitestone n?o conseguira, ou melhor, estas influencias, com todos os outros feiticeiros attractivos da nossa terra, ainda n?o haviam conseguido de Mr. Richard Whitestone dois importantes resultados:-a adop??o dos habitos de vida peninsular, contra os quaes antes reagia sempre com a inteira inflexibilidade de suas fibras britannicas, e o respeito á grammatica portugueza, que, em todas as quatro partes, maltratava com uma irreverencia, com um desplante de bradar aos céos e de desafiar os rigores da férula mais indulgente.

N?o desmentia Mr. Richard a asser??o do auctor das Lendas e Narrativas, quando affirma que sempre que um inglez, em casos desesperados, recorre a algum idioma estranho, nunca o faz, sem o torcer, estafar, e mutilar com toda a barbaridade de um verdadeiro Kimbri.

De facto, as cinzas de Lobato e de Madureira deviam agitar-se na sepultura sempre que Mr. Whitestone fallava, porque as regras mais triviaes de regencia e de concordancia eram por elle atropelladas com uma frieza de animo, com uma fleugma, com uma impassibilidade, somente comparaveis ás de um membro do Jockey-Club, ao passar com o cavallo por cima do corpo de algum transeunte inoffensivo ou competidor derrubado na arena.

N?o era mais feliz a prosodia, a alatinada prosodia d'este recanto peninsular.

As combina??es grammaticaes de Mr. Richard, ao fallar a nossa lingua, saíam marcadas com um verdadeiro cunho britannico. Venus, a propria Venus, perderia aquellas illus?es, que nos refere o cantor dos Lusiadas, se porventura ouvisse o portuguez que elle pronunciava.

Transparecia de alguma sorte nas ora??es do seu discurso o credito liberal de um verdadeiro cidad?o de Londres. O espirito conciliador e ordeiro, o constitucionalismo arreigado n'aquelle animo inglez, e adhes?o aos principios interventores adoptados no seu paiz, parecia haverem-se estendido, extravagantemente, ao campo da syntaxe portugueza, levando Mr. Richard, n'um excesso de tendencia harmonisadora, a tentar n'ella concordancias de substantivos e adjectivos contra a absoluta e insuperavel repugnancia de generos e de numeros; e a modificar a constitui??o grammatical de um paiz alliado, como a Inglaterra gosta de modificar a sua constitui??o politica.

O effeito reunido d'aquella prosodia e syntaxe era ás vezes de uma resultante comica que n?o actuava impunemente sobre os ouvidos, aliás n?o muito pechosos, dos collegas commerciaes, em cujos labios sorrisos de malicia mal disfar?ada vinham por instantes afugentar a sisudez de profiss?o.

Mr. Whitestone percebia-os e bem lhes suspeitava o sentido, mas era completamente indifferente ao que percebia e suspeitava.

Se o contradissessem na pronuncia de uma palavra ingleza, embora das mais controvertidas, se descobrisse um sorriso nos circumstantes, na occasi?o em que elle estivesse fallando a patria lingua, ent?o sim, ent?o era possivel que chegasse a exaltar-se a ponto de quasi amea?ar o imprudente com uma irreprehensivel applica??o da nobre sciencia dos boxers, quasi divina arte do s?co, que, desde Jack Brougton, tem sido cultivada em Londres ?com fanatismo e ensinada com talento?-textuaes palavras de um escriptor ex-professo.

Mas os sorrisos, que lhe valiam as atrocidades praticadas por elle nas grammaticas estrangeiras, esses, soffria-os com impassivel indifferen?a e n?o sei até se com certos vislumbres de orgulho e regosijo.

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