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A Morgadinha dos Cannaviaes

A Morgadinha dos Cannaviaes

Júlio Dinis

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A Morgadinha dos Canaviais é o terceiro romance do escritor português Júlio Dinis, publicado em 1868. A acção passa-se no século XIX onde residiu Julio Dinis (Quinta dos Canaviais e Quinta da Alvapenha). Retrata a Morgadinha, chamada Madalena Constança, uma rapariga de enorme beleza e generosidade.

Chapter 1 No.1

Ao cair de uma tarde de dezembro, de sincero e genuino dezembro, chuvoso, frio, a?outado do sul e sem contrafeitos sorrisos de primavera, subiam dois viandantes a encosta de um monte por a estreita e sinuosa vereda, que pretenciosamente gosava das honras de estrada, á falta de competidora, em que melhor coubessem.

Era nos extremos do Minho e onde esta risonha e feracissima provincia come?a já a resentir-se, sen?o ainda nos valles e planuras, nos visos dos outeiros pelo menos, da vizinhan?a de sua irm?, a alpestre e severa Traz-os-Montes.

O sitio, n'aquelle ponto, tinha o aspecto solitario, melancolico, e, n'essa tarde, quasi sinistro. D'alli a qualquer povoa??o importante, e com nome em carta corographica, estendiam-se milhas de pouco transitaveis caminhos. Vestigios de existencia humana raro se encontravam. Só de longe em longe, a cho?a do pegureiro ou a cabana do rachador, mas estas t?o ermas e desamparadas, que mais entristeciam do que a absoluta solid?o.

N?o se moviam em perfeita igualdade de condi??es os dois viandantes, que dissemos.

Um, o mais mo?o e pela apparencia o de mais grada posi??o social, era transportado n'um pouco esculptural, mas possante muar, de inquietas orelhas, musculos de marmore e articula??es fieis; o outro seguia a pé, ao lado d'elle, competindo, nas grandes passadas que devoravam o caminho, com a quadrupedante alimaria, cujos brios, além d'isso, excitava por estimulos menos brandos do que os da simples e nobre emula??o.

Contra o que seria plausivel esperar d'este desigual processo de transporte, dos dois o menos extenuado e impaciente com as longuras e fadigas da jornada n?o se pode dizer que f?sse o cavalleiro.

A postura de abatimento que lhe tomára o corpo, o olhar melancolico, fito nas orelhas do macho, a indifferen?a, a taciturnidade ou o manifesto mau humor, que nem as bellezas e accidentes da paizagem natural conseguiam já desvanecer, o obstinado silencio que apenas de quando em quando interrompia com uma phrase curta mas energica, com uma pergunta impaciente sobre o termo da jornada, contrastavam com a viveza de gestos e desempenado j?go de membros do pedestre, com a sua torrencial verbosidade, a que n?o oppunha diques, e com as joviaes cantigas e minuciosas informa??es a respeito de tudo, por meio das quaes se encarregava de entreter e ao mesmo tempo instruir o seu sorumbatico companheiro.

Explica-se bem esta differen?a, dizendo que o cavalleiro era um elegante rapaz de Lisboa, que fazia ent?o a sua primeira jornada, e o outro um almocreve de profiss?o.

O leitor provavelmente ha de ter jornadeado alguma vez; sabe portanto que o grato e quasi voluptuoso alvoro?o, com que se concebe e planisa qualquer projecto de viagem, assim como a suave recorda??o que d'ella guardamos depois, s?o coisas de incomparavelmente muito maiores delicias, do que as impress?es experimentadas no proprio momento de nos vermos errantes em plena estrada ou pernoitando nas estalagens, e mórmente nas classicas estalagens das nossas provincias. As pequenas impertinencias, em que se n?o pensa antes, que se esquecem depois, ou que a saudade consegue até dourar e poetisar a seu modo; esses microscopicos martyrios, que de longe n?o avultam, actuam-nos, na occasi?o, a ponto de nos inhabilitar para o g?so do que é realmente bello. A dureza do colch?o, em que se dorme, do albard?o ou selim sobre que se monta, o tempêro ou destempêro do heteróclito cozinhado com que se enche o estomago, a lama que nos encrusta até os cabellos, o pó que se nos insinua até os pulm?es, o frio que nos inteiri?a os membros, o sol que nos congestiona o cerebro, tudo ent?o nos desafina o espirito, que traziamos na tens?o necessaria para vibrar perante as maravilhas da natureza ou da arte.

Só pelo pre?o de muitas jornadas se compra o habito de ficar impassivel no meio dos episodios d'estas pequenas odyssêas, que atormentam e exhaurem o animo dos Ulysses novatos; mas ai, quando se adquire esse habito, tambem nos achamos já com a sensibilidade mais embotada para as commo??es do bello.

Examina-se com mais minuciosidade, mas com menos enthusiasmo; analysa-se mais e melhor; porém a propria analyse é a prova de que se sente menos. Onde domina o sentimento e a imagina??o, mal teem cabida a paciencia e phleúgma, necessarias aos processos analyticos. O homem positivo e frio recolhe de qualquer excurs?o á patria com a carteira cheia de apontamentos; o enthusiasta e poeta nem uma data regista. Viu menos, sentiu mais.

Mas Henrique de Souzellas-que era este o nome do cavalleiro-f?ra educado e passado da infancia á plena juventude, em Lisboa, levantando-se por avan?ada manh?, frequentando o theatro, o Gremio, as camaras, parolando no Chiado ou no Rocio, e indo alguns dias no anno a Cintra, ou qualquer praia de banhos, desenfadar-se da monotonia da capital.

Desde que fazia perfeito e consciente uso da raz?o, f?ra esta jornada, em que o encontramos, a primeira levada a effeito, e logo sob t?o maus auspicios, que era para suffocar-lhe á nascen?a os instinctos de touriste, se porventura quizessem despertar n'elle.

Havia dois dias que cavalgava aquelle rocinante, unico vehiculo accommodado aos caminhos por que passára. E ent?o que dois dias! D'aquelles, durante os quaes o céo, uniformemente pardo, parece desfazer-se em agua, e a chuva cae sem interrup??o e com uma teimosia e constancia impacientadoras; d'aquelles em que a terra saciada rejeita já a agua que recebe, a qual escorre nos declives, transborda dos algares, e encharca-se nos terrenos baixos, transformando em brejos as lezirias; em que as lufadas do sul vergam e torcem os ramos, melancolicamente despidos, dos álamos e sobreiros, e emprestam aos pinheiraes a voz dos mares; em que os campos se mostram desertos, a noite se anticipa, e t?o densas nuvens cobrem o firmamento, que parece tomar-nos a persuas?o de que nunca mais o veremos com as suas formosas vestes de azul.

Vejam se, n'estas circumstancias, o pobre rapaz podia deixar de ir cabisbaixo, triste e dando ao diabo a viagem que commettera.

E para quê e por quê a commettera elle assim?

Em poucas palavras procuraremos satisfazer a natural interroga??o, que é de supp?r nos dirigissem os leitores, se podessem fazel-o.

Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos vinte e sete annos, vivendo, como dissémos, aquella enlanguescedora vida da capital, e dividindo as atten??es do espiri Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos vinte e sete annos, vivendo, como dissémos, aquella enlanguescedora vida da capital, e dividindo as atten??es do espirito pela politica, pela litteratura e pelos destinos do theatro de S. Carlos, do qual estava habilitado a fazer circumstanciada chronica, que abrangesse os ultimos dez annos.

N?o concebia vida fóra d'aquillo.

O mundo para elle era Lisboa. N?o sentia desejos, nem imaginava possibilidade de visitar a Europa, quanto mais a provincia; o que seria maior fa?anha.

N?o que lhe faltassem recursos para realisar qualquer projecto d'esta natureza.

Henrique herdára dos paes rendimentos bastantes, dos quaes vivia folgadamente e sem precisar de sacrificar nos altares da economia.

Mas a indolencia lisbonense manietava-o alli. A poucos ia t?o direita a apostrophe de Garrett aos seus ?queridos alfacinhas?, a qual se pode ler no livro setimo das Viagens.

De certo tempo em deante come?ou, porém, a incommodal-o uma especie de vácuo interior, um mal-estar, doen?a infallivel nos celibatarios sem familia, quando chegam á idade a que chegou Henrique, e passam a vida como elle.

Tudo lhe causava fastio. Bocejava em S. Carlos, bocejava nas camaras, bocejava no Gremio, bocejava no Suisso, no Chiado e nos circulos dos seus amigos, os quaes principiaram tambem a achal-o insupportavel de insipidez; porque poucas coisas ha que mais perturbem o espirito, do que o espectaculo d'um homem que boceja ou dorme, onde e quando os outros forcejam por divertir-se.

O demonio da hypocondria, esse demonio negro e lugubre, implacavel verdugo dos ociosos e egoistas, o qual havia muito o espiava, apoderou-se d'elle em corpo e alma.

Ahi temos, desde esse instante, Henrique muito preoccupado com a sua pessoa, imaginando-se victima de mil e uma molestias, as mais disparatadas e incompativeis, suspeitando-se conjunctamente predestinado para a apoplexia e para a phtisica, para o cancro e para a aliena??o, para a cegueira e para as aneurismas, tremendo á leitura do obituario da semana, folheando livros de medicina, construindo theorias physiologicas, consultando todos os medicos da capital, experimentando todo o arsenal pharmaceutico e todos os annuncios, em parangona, da quarta pagina dos periodicos, e elevando as cren?as do seu espirito amedrontado até ás mysteriosas e nevoentas alturas do credo homoepathico! Ao mesmo tempo manifestou-se n'elle uma progressiva degenera??o de g?sto; n?o podia ler uma pagina dos livros que lhe eram predilectos; desfazia-se sem desg?sto de quadros, móveis, estatuas e objectos curiosos que colleccionára com paix?o; detestava a musica, o theatro, n'uma palavra, tornára-se um dos maiores flagellos, que podem pesar sobre a humanidade e que muito em especial causam o supplicio dos medicos que os aturam.

Foram estes os que, em parte de boa fé, em parte com o desculpavel intuito de sacudirem de si tal pesadelo, lhe deram um dia de conselho, que f?sse viajar.

Henrique de Souzellas julgou ouvir uma heresia n'esta palavra: viajar.

Viajar? E as suas aneurismas? E as suas imminencias apopleticas? E as suas disposi??es para tantas outras enfermidades? Pois um homem pode lá viajar com esta bagagem pathologica?

E se lhe désse alguma coisa pelo caminho? Recusou com mau humor a receita, e ficou na capital.

Exacerbaram-se os padecimentos, repetiram-se as consultas, e os medicos, como se para isso apostados, a insistirem em que saisse de Lisboa.

-O senhor n?o tem nada-diziam alguns.

Henrique perdia a cabe?a, ao ouvir isto.

Prolongou-se este estado de coisas, até que um dia o hypocondriaco rapaz persuadiu-se muito sériamente de que estava chegada a sua hora extrema.

Um medico velho e grave, que por essa occasi?o o escutou, em vez de se rir d'elle, disse-lhe, muito sisudo:

-Homem! O senhor está realmente mal. Esse estado de imagina??o n?o pode prolongar-se mais tempo, sem romper por ahi em alguma doen?a que o sacrifique. Se quizer salvar-se, saia-me d'aqui, emquanto é tempo. Quebre por todos os habitos, e escolha entre as fortes impress?es de uma grande capital, como Paris ou Londres, ou as mornas sensa??es de um completo viver de aldeia. Os revulsivos e os emollientes curam por meios oppostos ás vezes as mesmas molestias.

Ora succedeu que n'esse mesmo dia recebesse Henrique um presente de fructa de uma sua tia, santa creatura que elle, desde crean?a, n?o tornára a vêr.

Vivia regalada em uma aldeia sertaneja do Minho onde na idade de cinco annos Henrique passára alguns mezes na companhia de sua m?e.

Aquelle presente frugal recordára-lhe esse tempo, já meio apagado na memoria, e conseguira fazer-lhe saudades. D'ahi uns vagos desejos de voltar a vêr aquelles sitios.

Por isso ao ouvir o conselho do doutor, Henrique nomeou-lhe a aldeia, em que esta sua parenta vivia.

O velho facultativo applaudiu a ideia e instou para que f?sse abra?ada.

O sobrinho escreveu ent?o á tia, e, passados dias, punha-se a caminho.

Mil vezes se arrependeu, depois da resolu??o tomada; mil vezes mandou ao diabo o conselho do medico e phantasiou horriveis exacerba??es em todos os seus males. Os inconvenientes de uma jornada, feita ainda segundo os velhos processos, com malas, coldres e pistolas, botas de montar e almocreve, ampliava-lh'os a propor??es estupendas, o prisma da hypocondria.

No momento em que nos associámos ao cavalleiro, caira elle n'um desalento profundo, n'um quasi convencimento de proxima anniquila??o, do qual nem a loquacidade do almocreve, condimentada, como era, de pragas eloquentes e de cantigas pouco edificantes, o conseguia arrancar.

Havia mais de uma hora que estavam luctando com as difficuldades da ascens?o do ingreme e escabroso caminho, que torneava o monte como as voltas de uma helice.

Era este monte uma como irregular pyramide, levantada no meio da amplissima bacia, onde tinha assento a aldeia que Henrique demandava; por isso o estafado rapaz n?o podia atinar a raz?o de conveniencia pela qual, tendo de procurar o valle, assim porfiavam em descrever as fastidiosas curvas da quasi interminavel espiral, que os approximava do vertice.

N?o se concebe uma estrada menos logica do que aquella.

No nosso paiz s?o porém frequentes estas faltas de logica nas estradas.

O almocreve havia-se separado por momentos de Henrique com o fim de encurtar distancias, seguindo por um atalho só franqueavel a gente de pé.

Henrique nem desviára os olhos para o fundo valle, que se abria á esquerda, velado pela densa nevoa d'aquella atmosphera saturada de humidade, nem prestava atten??o á agreste e selvatica paizagem, do lado direito, toda encrespada de pinheiraes nascentes e de espinhosas tojeiras.

Os olhos procuravam, em anciosa interroga??o, o mais alto da flexuosa ladeira que subia, no sitio em que ella, formando um cotovello, furtava á vista o seguimento ulterior.

N'estas curvas das estradas sorri sempre de longe ao viajante, can?ado e aborrecido, que pela primeira vez as trilha, uma promettedora esperan?a.

-D'alli verei talvez o termo do caminho-pensa elle.

Mas quantas vezes, ao approximar-se, esta esperan?a lhe foge!

Assim aconteceu a Henrique, que, ao chegar á almejada inflex?o e quando esperava principiar emfim a descer para o valle e approximar-se da aldeia, viu que o macho, pratico no caminho, e á disposi??o de cujo instincto elle collocára a raz?o, dobrava ainda para a direita e continuava a contornar e a subir o monte. A espiral n?o terminára ainda. Henrique olhou em torno de si, profundou a vista nas sombras do valle, nada p?de descobrir, que lhe promettesse a aldeia procurada. Muita arvore, povoa??o nenhuma!

Teve um paroxismo de impaciencia!

-Isto n?o é estrada!-exclamou elle, exasperado.-S?o os nove circulos do Inferno de Dante virados para fóra.

E a luz do dia a fugir cada vez mais, e a chuva a augmentar, a calar através do grosso gab?o de jornada que Henrique vestia! O desgra?ado vergava sob o pêso da sua consterna??o.

Ajuntou-se-lhe outra vez o almocreve, assobiando com fleugma desesperadora.

-Com um milh?o de demonios!-bradou-lhe Henrique, n?o podendo conter-se.-Essa maldicta terra foge deante de nós, homem!

-Estamos quasi lá, meu patr?o. é alli logo adeante-respondeu o almocreve, sem se alterar. Vê aquella capellinha branca em cima d'aquelle monte? pois fica já para além da povoa??o. é a ermida da Senhora da Saude. é um instante.

-Desde as duas horas da tarde que me dizes que é um instante, e eu estou acreditando que cada vez nos afastamos mais. Pois se a aldeia fica alli em baixo, para que diabo subimos nós? ás voltas que temos dado, estou persuadido de que vamos t?o adeantados como quando principiámos a subir.

-Pois olha que dúvida! Se se f?sse a direito lá por baixo, era mais perto, mas...

-Mas foi ent?o pelo prazer de trepar, que me trouxeste por aqui?

-N?o é isso, patr?o; mas bem vê v. s.a que o caminho lá por baixo é todo cortado por quintas e campos, e é preciso dar taes voltas, que a final fica mais longe. Depois, com a chuva que tem caído, faz lá ideia de que o caminho lá por baixo é todo cortado por quintas e campos, e é preciso dar taes voltas, que a final fica mais longe. Depois, com a chuva que tem caído, faz lá ideia de como est?o os riachos por lá! Só o esteiro do almargeal é para uma pessoa se afogar. Mas tenha o patr?o paciencia, que pouco falta agora. Vê v. s.a aquelle tronco de sobreiro que parece, visto d'aqui, um frade de capuz?

-é alli?

-N?o, senhor-disse o homem, rindo;-mas vêem-se d'aquelle sitio as primeiras casas da aldeia.

-As primeiras!-murmurou Henrique em tom lastimoso; e penderam-lhe os bra?os com mais desalento e augmentou-se-lhe a flex?o da columna vertebral.

O almocreve proseguiu, para o distrair:

-Tenho passado por estes sitios muita vez com neve de se cortar á faca e de noite. E olhe que nunca tive mêdo. Qual historia! Mêdo? Isso sim! E vamos lá! o sitio n?o é dos mais seguros. Vê o senhor essa cruz preta, ahi á sua m?o direita, pregada no tronco d'esse pinheiro? Pois ahi mesmo mataram um homem, que vinha com uns centos de mil réis da feira franca de Vizeu, fez pelo S. Miguel um anno. E ainda hoje se está para saber quem foi. N'um ermo d'estes só os santos podem valer a uma creatura.

Henrique sentiu-se pouco á vontade com as elucida??es do cicerone; olhou para elle com desconfian?a e quasi julgou vêr moverem-se sombras suspeitas por entre os troncos dos pinheiros. Apalpou nos coldres os cabos das pistolas, e approximou as esporas dos ilhaes da cavalgadura.

Dentro em pouco attingiam o indicado tronco de sobreiro, de junto do qual deviam avistar a aldeia.

Henrique olhou; viu lá no fundo do valle muitas arvores, mas continuou a n?o enxergar vestigios de casas.

-Onde está a aldeia que dizias, homem?

-D'ahi já se vê-disse o almocreve, correndo para alcan?ar o cavalleiro.-N?o vê v. s.a, além, além, aquelles pinheiraes mansos?

-Vejo, sim.

-Pois já s?o da freguezia. Se f?sse mais claro havia de avistar a casa do guarda. é a tapada dos Bajuncos, que pertence á morgadinha dos Cannaviaes.

Henrique n?o respondeu. A distancia a que ficava ainda a tal tapada fel-o suspirar.

Emfim, passados minutos, principiaram a descer para o valle, costeando sempre obliquamente o monte.

Cem passos andados, fez-lhe o almocreve notar um pequeno ponto branco, que se divisava ao longe por entre a rama do arvoredo, mas já indistinctamente, em virtude do adeantado da hora e da intensidade da neblina.

-Lá está a capella da freguezia-dizia o homem.

-Alli? é um seculo para lá chegar!

-Qual! Estamos aqui, estamos lá. Eh, russo!

E applicou uma vigorosa vergastada nas ancas do macho, que accelerou o passo.

O homem continuou:

-Até se f?sse mais dia podia-se vêr d'aqui a pedra, que está no cemiterio novo, e que é da familia da morgadinha dos Cannaviaes. Foi a m?e d'ella a primeira pessoa que lá se enterrou, e até hoje mais ninguem. O povo, como o outro que diz, tem sua aquella em se enterrar fóra da egreja. Elle, a falar a verdade... Eu bem sei que tudo vae do costume... mas emfim a gente foi creada n'isto... Mas a pedra é coisa asseada. é como as que est?o na cidade.

Henrique, transido de frio, quebrado de desalento, já nem attendia ao que o homem ia dizendo.

Cerrára-se a noite de todo, quando attingiram emfim o valle. O terreno mudava agora de aspecto. Appareciam já, aqui e alli, alguns indicios de cultura, annunciando a proximidade de um povoado. Os caminhos estreitavam, internando-se no valle, e seguiam tortuosamente por entre muros t?scos de pedra ensossa, silvados e sebes naturaes. A chuva, que n?o cessára de cair, transformára estes caminhos, onde o declive n?o dava escoamento ás aguas, em charcos e tremedaes.

Novos indicios da vizinhan?a da aldeia iam successivamente apparecendo.

Aqui era uma manada de bois soltos, em direc??o do curral, guiados por uma crean?a de palho?a e pernas nuas, os quaes paravam a olhar com aquella express?o de composta curiosidade, que lhes é peculiar, para o recem-chegado visitante da aldeia. N?o faltou receio a Henrique, que supp?z a estes bonacheir?es quadrupedes a indole travêssa e bravia dos touros, a cuja chegada tantas vezes f?ra assistir em Lisboa.

Mais adeante passava por elles uma fileira de carros a vergarem sob o pêso do matto e atroando os ares com o chiar incómmodo das rodas sob o eixo, incómmodo para os ouvidos cidad?os de Henrique, cujos nervos se irritavam com elle, mas apparentemente agradabilissimo para os conductores alde?os, que ou dormiam ou cantavam com aquelle acompanhamento.

N'um e n'outro ponto deparavam-se-lhe já algumas casas de tectos de colmo, de cujas innumeras fendas saía um fumo espêsso, que a atmosphera humida mal deixava elevar nos ares. No olfacto deshabituado de Henrique de Souzellas o cheiro resinoso e activo das pinhas e das agulhas sêccas dos pinheiros, queimadas no lar, produziam sensa??es muito longe de serem agradaveis.

Augmentava-se-lhe com tudo isto a funda melancolia que já lhe tomára o animo.

-Tantas fadigas para este resultado!-pensava elle.-Sair de Lisboa para me enterrar n'esta aldeia escura e suja! Enganou-se o parvo do doutor. Cuidava que me salvava e matou-me. Eu morro por certo aqui. Deus lhe perd?e o homicidio.

Os caminhos succediam-se aos caminhos, qual mais tortuoso e incómmodo de trilhar; as curvas complicavam-se como as ruas de um labyrintho. Aqui subiam; desciam mais além, para subir outra vez. Umas vezes caminhavam em terreno descoberto, outras penetravam em t?o estreitas quelhas, apertadas entre paredes argilosas e humidas e toldadas de ramos entrela?ados, que só o instincto do animal podia evitar-lhes os perigos. Ora soavam as patas do macho como em ch?o lageado, ora amortecia-lhes o som um terreno, que a chuva encharcava, e a agua lamacenta vinha salpicar o rosto do cavalleiro.

As casas eram já frequentes, e algumas de menos humilde apparencia.

Os c?es, que, pelo timbre de voz, mostravam ser gigantes, ladravam raivosos por dentro dos port?es ou de sobre os muros das quintas, ao ouvirem os passos da cavalgadura ou a voz do almocreve, que falava ou cantava sempre.

Outras vezes era um inharmonico grunhir suino que accusava a vizinhan?a das córtes ou, partindo de um casebre rustico, o chorar de crean?as, entremeado com os ralhos das m?es e com as pragas dos chefes de familia.

O almocreve n?o desistira das suas func??es de cicerone, que sómente interrompia para saudar alguns conhecidos seus, a cuja porta passavam.

-Estes campos e lameiros-ia dizendo-s?o da morgadinha dos Cannaviaes; andam arrendados a um compadre meu.

E exclamava para dentro de uma casa terrea, escassamente allumiada por uma candeia:

-Boas noites, tia Escolastica. Como vae a pequenada?

-Ai, é vossemecê, sr. José? Ent?o n?o entra?-respondia-lhe uma voz feminina.

-Agora, n?o, ámanh?.

E proseguiu para Henrique:

-é uma santa creatura. A morgadinha...

Henrique interrompeu-o:

-Onde fica a final, a quinta de Alvapenha? onde mora minha tia? N?o me dirás?

-é logo ahi adeante, meu patr?o. Em nós passando umas casas amarellas que ha ahi... é logo ao pé. Essas casas que digo s?o tambem da morgadinha, mas ha uma demanda pelos modos.

O almocreve falava pela decima ou undecima vez na morgadinha. Até esta periodica referencia a uma personagem que elle n?o conhecia, impacientava Henrique de Souzellas.

E continuavam a succeder-se em enredado dedalo as quelhas e azinhagas, a ponto de fazer perder toda a orienta??o. Umas vezes ouviam o ruido das levadas, que as ultimas chuvas tinham engrossado; adeante, transpunham uma ponte rustica, escutando das profundezas do despenhadeiro, que ella atravessava, o fragor das cascatas nos a?udes ou o ranger das rodas dos moinhos.

Henrique a cada momento imaginava cair n'um abysmo.

-S?o os a?udes do Casal-dizia o almocreve berrando para se fazer ouvir através do estrondo da torrente.-Pertencem á morgadinha dos Cannaviaes.

Henrique nem alento já tinha para falar.

Ao triste e quasi sinistro aspecto d'aquella aldeia t?o cerrada lhe envolveu o cora??o a nuvem de melancolia, que cedeu sem resistencia ao crescente torpor que o invadia, como o que desespera da vida e da salva??o.

Mais adeante, excitou-lhe ainda as atten??es uma toada plangente, melancolica, monotona, que exacerbou estes effeitos.

-é uma fiada em casa do Tapadas-disse o almocreve.-é um dos maiores amigos do pae da morgadinha. Vê aquelle muro acolá?

-Eu n?o vejo nada. Deixa-me!

-Pois pertence já á quinta dos Cannaviaes, que a morgadinha...

-Outra vez! Cala-te para ahi com essa morgadinha-exclamou Henrique.

Era evidente emfim que estavam em pleno cora??o do povoado. As casas appareciam mais juntas. De algumas saía um surdo rumor de vozes que tinha o que quer que era de lugubre. Era a cor?a rezada em familia a Nossa Senhora. A voz grave do lavrador casava-se com a voz quebrada e trémula do av?, com a voz sonora e fresca da m?e, e a juvenil das raparigas e crean?as n'aquelle piedoso c?ro, produzindo um effeito que acabou por levar ao auge a impaciencia do nosso spleenetico viajante.

-Sumiu-se essa endiabrada quinta de Alvapenha, que n?o a acabamos de attingir?

O almocreve d'esta vez nem respondeu; sacudiu uma chicotada sibilante junto ás orelhas do muar, o qual com desusada rapidez galgou uma ladeira orlada de arvores, volveu á direita e, á voz do almocreve, estacou em frente de um port?o de quinta resguardado por um telheiro rustico.

-é aqui-disse o guia.

-Até que emfim!-exclamou Henrique, suspirando. Suspiro de conforto e de tristeza ao mesmo tempo, como o do homem can?ado da vida, quando antevê o repouso do tumulo. Em Henrique era intima a convic??o de que a quinta de Alvapenha lhe havia de servir de cemiterio.

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