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Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo II

Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo II

Alexandre Herculano

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Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo II by Alexandre Herculano

Chapter 1 No.1

Diz-se que uma das mais bellas miss?es da imprensa é defender a boa raz?o, a arte, e a honra e gloria da patria. Imagina-se ampla colheita de renome, de ben??os, de vantagens de toda a especie para o escriptor que alevanta a voz a favor do bom, do justo e do bello, se a voz do que escreve é assás poderosa para se esperar que mova os animos dos seus concidad?os.

E com effeito, indicar a estes o recto caminho, quando transviados; tentar affei?oá-los a nobres e puros sentimentos; fazê-los amar o solo natal; despertar-lhes affectos pelo que foi grande e nobre na historia do paiz, parece que deveria produzir fructos de ben??o para o escriptor que o tentasse. N?o é, todavia, assim. Ha para isso um obstaculo quasi insuperavel; a supersti??o pelas idéas e tendencias do presente, mais cega que a supersti??o pelas cren?as do passado. As paix?es s?o mais energicas do que as reminiscencias, as aspira??es que as saudades. Gloria, lucro, respeito, ben??os s?o para aquelle que afaga com palavras mentidas as preoccupa??es populares; para aquelle que, sem discrime, louva, adorna ou repete como echo as opini?es que ao redor delle, talvez por cima delle, esmagando-lhe a consciencia, passam como torrente. Tumultua o genero humano correndo ao longo dos seculos: o louvador, ás vezes o promotor do tumulto, se a natureza lhe concedeu imagina??o e talento, vai adiante como capit?o e guia da gera??o que corre ebria: incita-a, arrasta-a, deslumbra-a. As cor?as voam-lhe do meio do tropel sobre a cabe?a. Verdade é que ao cabo do tanto lidar elle se despenhará com essa gera??o no abysmo do passado; verdade é que o abysmo se fechará para elle com o sêllo da reprova??o de cima, e que, porventura, n?o tardará que o futuro passe por ahi a sorrir, ou se afaste com tedio do sepulchro dealbado do erro ou da villania. Mais isso que importa? O homem que vendeu ao seculo a consciencia e o engenho, que Deus n?o lhe deu para mercadejar com elle, foi bemquisto e glorificado emquanto vivo; foi antesignano do progresso, embora este seja avaliado algum dia como progresso fatal!

Mas que póde esperar aquelle que, nessa longa e ampla estrada do tempo, por onde o genero humano corre desordenado, quizer vir, do lado do futuro e em nome do futuro, dizer á gera??o a que pertence:-parae lá-? Embora a sua voz troveje: embora as suas palavras devam fazer vibrar todas as cordas do cora??o e despertar todas as convic??es da alma: n?o espere ser ouvido. As multid?es continuar?o a passar desattentas. Escarnecido, amaldic?oado talvez, dormirá esquecido na morte, e os sabios e prudentes cultores de uma philosophia corrompida e egoista dir?o, com insultuosa compaix?o, ao passar pelo que jaz no pó:-Pobre louco, recebeste o premio de querer contrastar o seculo!

O que havemos dito é crua verdade; mas é a verdade. Ha nesta epocha dous caminhos a seguir; um, estrada larga, batida, plana, sem precipicios, mas que conduz á prostitui??o da intelligencia; outro, vereda estreita, tortuosa, malgradada, mas que se dirige ao applauso da propria consciencia. Aquelles cujas esperan?as n?o v?o além dos umbraes do cemiterio e que ahi veem, n?o o termo da sua perigrina??o na terra, mas o remate da existencia, que sigam a facil estrada. Nós, porém, que guardamos para além da vida as nossas melhores esperan?as, tomaremos o bord?o do romeiro e iremos rasgar os pés pela vereda despinhos. Resignar-nos-hemos nos desprezes e, como os soldados do eremita Pedro, que, pondo a cruz vermelha no hombro para irem morrer na Palestina, clamavam-?Deus assim o quer! Deus assim o quer!?-diremos tambem:-?sofframos o menoscabo e o vilipendio: sofframos que assim o quer Deus.?

é contra a indole destruidora dos homens de hoje que a raz?o e a consciencia nos for?am a erguer a voz e a chamar, como o antigo eremita, todos os animos capazes de nobre esfor?o para nova cruzada. Ergueremos um brado a favor dos monumentos da historia, da arte, da gloria nacional, que todos os dias vemos desabar em ruinas. Esses que julgam progresso apagar ou transfigurar os vestigios venerandos da antiguidade que sorriam das nossas cren?as supersticiosas; nós sorriremos tambem, mas de lastima, e as gera??es mais illustradas que h?o de vir decidir?o qual destes sorrisos significava a ignorancia e a barbaridade, e se n?o existe uma supersti??o do presente como ha a supersti??o do passado.

A mais recente quadra de destrui??o para os monumentos, tanto artisticos como historicos, de Portugal, póde dividir-se em duas epochas bem distinctas. Acabou uma: a outra é aquella em que vivemos.

A ultima metade do seculo XVIII e os annos já decorridos deste seculo tem sido um periodo de reforma ou antes de revolu??o. A revolu??o n?o é de hontem. Quasi sempre as manifesta??es ruidosas e, digamos assim, externas das epochas de grandes transforma??es vem muito depois de iniciadas estas. No seio da formula social que vai fenecer ha a gesta??o da formula social que surge. Quando as labaredas rompem pelas janellas do edificio, ha muito que o incendio lavra pelo interior dos aposentos.

Entre nós, as reformas come?ou-as um homem grande, mas que era homem do seu tempo. Genio positivo e mui pouco especulativo, ministro de um rei absoluto, e sabendo que, se n?o caminhasse depressa, ficaria no caminho, o marquez de Pombal fez resurgir de salto sciencia, artes, industria e administra??o. A maioria do paiz obedecia ás reformas, mas sem as comprehender. O circulo dos individuos que alcan?avam o valor dellas e o influxo que deviam ter no futuro, era assás limitado. A inicia??o estava feita, mas o fogo tinha de lavrar muito tempo debaixo da cinzas. Exteriormente, a maior parte das reformas, destoando de habitos inveterados, repugnando n?o raro a opini?es vulgares, devendo ter resultados remotos, que o commum dos espiritos n?o sabiam antever, nem podiam apreciar, definharam-se ou morreram logo que se quebrou o bra?o de ferro que as realisára e mantivera, sorte ordinaria de todos os commettimentos sociaes que antecedem a diffus?o das idéas que representam. O conde de Oeiras, pondo os estudos ao nivel dos do resto da Europa, fez acceitar o movimento scientifico desta; mas as intelligencias reconduzidas de salto ao bom caminho, sem transi??es graduaes, acceitaram mais as fórmas do que comprehenderam o espirito.

O que succedeu na sciencia succedeu na litteratura. Acabaram os acrostichos, os restos do gongorismo, os serm?es de antitheses e argucias, os elogios e conferencias palavrosas e retumbantes da Academia da Historia, onde o proprio reformador tambem peccara: ficámos, porém, com a litteratura á Luiz XIV, cuja influencia em Portugal come?ara a despontar no horisonte desde o come?o daquelle seculo e que, depois, os nossos innocentes Arcades acceitaram como emana??o legitima da arte grega e romana. Peior do que na sciencia, a regenera??o litteraria, desprovida de nacionalidade, alheia ás tradi??es portuguesas, nascia, digamos assim, morta. O mau gosto desapparecera, mas em logar delle ficava cousa que pouco mais valia; a inspira??o pautada, o estro convencional e a vacuidade da idéa escondida debaixo da opulencia da fórma.

Se, em parte, as sciencias e a industria foram introduzidas, ou como inventadas, no reinado do marquez de Pombal, as artes plasticas, e principalmente a architectura, cuja historia, mais do que a de nenhuma arte, neste momento nos importa, já anteriormente existiam. A epocha de D. Jo?o V foi uma epocha de luxo e riqueza lan?ados sobre um paiz miseravel, como alfombra preciosa em pavimento carunchoso e podre. Esse luxo e riqueza, que brotavam das minas da America, foram favoraveis aos artistas. As obras magnificas do nosso Luiz XIV, ou antes do simia de Luiz XIV, e mais que tudo a edifica??o do fradesco palacio de Mafra fizeram apparecer estatuarios, esculptores, architectos. Achou-os o conde de Oeiras, e deu aos seus talentos nova applica??o. Ao gosto corrompido da architectura italiana, que era a seguida em Portugal, fez substituir um gosto mais severo, mais util e mais mesquinho. Era o homem politico, o homem da vida practica dirigindo as artes: eram as artes reduzidas pura e simplesmente a um ramo de administra??o. Compare-se o caracter geral do convento de Mafra com o das grandes obras do marquez de Pombal, o plano da nova Lisboa, o Terreiro do Pa?o, a Alfandega, o Arsenal da Marinha, a parte moderna dos edificios da Universidade de Coimbra. Em Mafra, achar-se-h?o a exagera??o de ornatos e os primores do cinzel, mas nenhuma inspira??o verdadeiramente nobre e grande; achar-se-ha o desmesurado supprindo o sublime: nas obras do marquez, só se encontram largas moles desadornadas, edificios monotonos, postoque uteis ou necessarios, uma pra?a magnifica, onde campeiam monolithos enormes e que seriam admiraveis se n?o estivessem cobertos de remendos e parches, e cujas paredes se pintaram de ochre para poupar alguns palmos de silharia, alguns palmos de marmore n'uma collina de marmore. O plano de qualquer obra publica desta epocha dir-se-hia sempre tra?ado na mente de um negociante hollandês. O despotismo ignorante e presumido estragara a arte com a puerilidade; o despotismo illustrado estragou-a com a raz?o. Mafra é um poema da Fenix-Renascida: a Lisboa do marquez de Pombal um soneto de Diniz ou uma ode de Gar??o. A cidade depois do convento é o Novo-methodo do padre Pereira expulsando das escholas latinas a grammatica do padre Alvares.

Morreu D. José I, facto insignificante em si, mas grave pelas suas consequencias. Com a morte desse homem desappareceu da scena politica o forte espirito que reinara em vez delle. Portugal so?obrou ent?o; apenas sobre o seu vortice de perdi??o boiaram por algum tempo as letras e a sciencia sustentadas ao de cima pelo bra?o do duque de Laf?es. A architectura, que n'um paiz pequeno e pobre, como o nosso, depende quasi exclusivamente do governo para existir, n?o decahiu porque estava já decadente: o que fez foi retroceder das fórmas mesquinhas, mas graves e simples, que adoptara, para os fogaréus e burriés e repolhos e espiraes e grinaldas da epocha anterior. Quereis saber o que ella foi d'ahi ávante? Olhae para o mais notavel edificio do subsequente reinado, para o convento do Cora??o de Jesus. Como o pensamento unico do governo era desmentir o bom, o mau, o indifferente, tudo, em summa, quanto se fizera no antecedente reinado, buscou-se restaurar a architectura de Mafra, menos a vastid?o, menos a opulencia. Caricatura de caricatura. Aquelles portaes microscopicos, aquellas columnas disformes e deformes, encostadas á portada da igreja, especie de polypos de pedra, guardados alli para servirem de pilares em outro monumento que delles viesse a carecer; aquelle atrio que recorda o vomitorium dos amphitheatros romanos; aquellas torres onde n?o se pouparam nem columnellos inuteis, nem franjas e avellorios de marmore; tudo isso é amostra do gosto da epocha, gosto que tem durado e que ainda campeia nas fachadas de varios armazens ao divino construidos nos ultimos sessenta annos e baptisados com a pomposa denomina??o de templos.

Tal foi em Portugal a architectura durante seculo e meio. O renascimento, que condemnou em peso, como barbaras, as origens das na??es modernas e especialmente o que desdizia das diversas manifesta??es da civilisa??o grega e romana, envolveu n'esta condemna??o, em muitos casos injusta ou inepta, os admiraveis monumentos de arte que a idade media legara aos tempos modernos. As gera??es subsequentes, educadas n'uma adora??o irreflexiva de tudo quanto viera da Grecia e de Roma pagans, n?o podiam comprehender a sublime magestade e, digamos assim, o espiritualismo da arte christan. Os pa?os, os castellos, as pontes, os cruzeiros, as galilés das pra?as, as portas, as torres, os pelourinhos das cidades e villas, construidos desde o XI até o XV seculo quasi que desappareceram. Conservaram-se alguns mosteiros e sanctuarios, algumas cathedraes e parochias, n?o por serem obras da arte, mas por serem logares consagrados a institui??es religiosas, e talvez por terem faltado os recursos para os substituir por novas edifica??es.

Ainda assim, restar-nos-hiam hoje em mosteiros, em cathedraes e em outros edificios consagrados ao culto inestimaveis monumentos, se nesta terra, desamparada de Deus e da arte, tivesse havido sequer um vislumbre de gosto e de venera??o pelo passado, e n?o fosse justamente entre o clero, isto é, entre os guardadores naturaes desses mesmos monumentos, que surgissem os seus mais funestos adversarios. Porém os bispos sabiam theologia e direito canonico; os conegos e parochos, alguns sabiam latim; os frades, pelo menos os membros das antigas ordens monachaes, eram eruditos e homens de letras; mas nem os bispos, nem os conegos e curas d'almas, nem os frades entendiam de architectura. Entregaram tudo aos architectos e mestres de obras, que estragaram tudo. Quasi que escaceiava a pedra para se converter em cal. Os batefolhas n?o tinham m?os a medir. Columnas, capiteis, abobadas, torres, portaes, arcarias, claustros, tudo foi caiado, dourado, enfeitado, estragado. Procurae na maior parte das nossas sés, das nossas collegiadas, das nossas velhas parochias, um desses pilares polystylos, desses capiteis e cimalhas rendadas, desses bocetes e penduroes variados, dessas gargulas ás vezes insolentes, ás vezes terrificas, ás vezes finamente epigrammaticas, e nada achareis do que foi. Aquelles livros de pedra, complexos como os poemas de cavallaria, ingenuos como os poemas do Cid ou dos Nibelungen, converteram-se em palimpsestos donde se raspou a historia das cren?as, dos costumes, dos trajos, das alfaias de antigas eras; onde se apagaram os vestigios de successos notaveis, de dramas populares, de lendas poeticas, e até retratos unicos de var?es singulares. Nesses livros preciosos, em vez do seu primitivo conteúdo, só achareis as rasuras que m?os ineptas ahi fizeram e os caracteres que sobre essas paginas, outrora eloquentes, tra?ou a peior das barbarias, a barbaria pretenciosa e civilisada. Passou por lá o pic?o do reformador, a colher do estucador, o mordente do dourador. Paredes, pilares, capiteis, la?arias, ogivas est?o rebocados, alvos, polidos, dourados. A luz do sol já n?o bate no pavimento do templo convertida em luz ba?a e saudosa pelos vidros córados das frestas esguias, dos espelhos circulares: agora alaga em torrentes essas paredes brancas e lisas, que fingem ás vezes absurdamente pedras impossiveis estendidas pela colher do alveneu sobre a face rugosa, mas secular e veneranda, da verdadeira pedra. O templo de Deus é como a sala do baile, como a sala dos legisladores, como a sala do theatro, como a pra?a publica, sem mysterios, sem tradi??es, sem saudades.

Mas se a culta barbaria dos nossos avós e de nossos paes forcejou por cobrir com remendado véu os monumentos dos primeiro seculos da monarchia, deixou em muitos delles ao menos, os seus formosos e ideaes perfis, as suas linhas architectonicas. O pensamento que inspirou essas concep??es grandiosas como que se alevanta d'entre as devasta??es perpetradas pelo camartélo, pela picareta e pelos boi?es de cal delida, e apesar de se haverem dirigido sem tino, sem gosto, sem harmonia as restaura??es dos edificios que as injurias do tempo em parte haviam arruinado, resta ainda muito que estudar e admirar nesses monstros. Até, em alguns delles, é possivel supprimir, pela imagina??o, o moderno e p?r em logar deste o antigo. A poesia ainda n?o desamparou de todo o mutilado monumento.

Mas durar?o por muito tempo esses restos da mais formosa e magnifica de todas as artes? N?o o esperamos; mas lavraremos aqui, ao menos, um protesto contra o vandalismo actual. Nossos paes destruiram por ignorancia e ainda mais desleixo: destruiram, digamos assim, negativamente: nós destruimos por idéas ou falsas ou exageradas; destruimos activamente; destruimos, porque a destrui??o é uma vertigem desta epocha. Feliz quem isto escreve, se podesse curar alguem da febre demolidora; salvar uma pedra, só que fosse, das m?os dos modernos hunos!

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