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O Mandarim é uma novela do escritor português Eça de Queirós, escrito em Bristol, na Inglaterra, e publicado em Lisboa em1880.

Chapter 1 1

Eu chamo-me Theodoro-e fui amanuense do Ministerio do Reino.

N'esse tempo vivia eu á travessa da Concei??o n.o 106, na casa d'hospedes da D. Augusta, a esplendida D. Augusta, viuva do major Marques. Tinha dois companheiros: o Cabrita, empregado na Administra??o do bairro central, esguio e amarello como uma tocha d'enterro; e o possante, o exuberante tenente Couceiro, grande tocador de viola franceza.

A minha existencia era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de mangas de lustrina á carteira da minha reparti??o, ia lan?ando, n'uma formosa letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado, estas phrases faceis: ?Ill.mo e Exc.mo Snr.-Tenho a honra de communicar a V. Exc.a... Tenho a honra de passar ás m?os de V. Exc.a, Ill.mo e Exc.mo Snr...?

Aos domingos repousava: installava-me ent?o no canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, costumava limpar com clara d'ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta hora, sobretudo no ver?o, era deliciosa: pelas janellas meio cerradas penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos sinos da Concei??o Nova, e o arrulhar das rolas na varanda; a monotona susurra??o das moscas balan?ava-se sobre a velha cambraia, antigo véo nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador os pratos de cerejas bicaes; pouco a pouco o tenente, envolvido n'um len?ol como um idolo no seu manto, ia adormecendo, sob a fric??o molle das carinhosas m?os da D. Augusta; e ella, arrebitando o dedo minimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as rêpas lustrosas com o pentesinho dos bichos... Eu ent?o, enternecido, dizia á deleitosa senhora:

-Ai D. Augusta, que anjo que é!

Ella ria; chamava-me engui?o! Eu sorria, sem me escandalisar. Engui?o era com effeito o nome que me davam na casa-por eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter á cabeceira da cama uma lithographia de Nossa Senhora das D?res que pertencera á mam?, e corcovar. Infelizmente corcóvo-do muito que verguei o espinha?o, na Universidade, recuando como uma pêga assustada diante dos senhores Lentes; na reparti??o, dobrando a fronte ao pó perante os meus Directores Geraes. Esta attitude de resto convém ao bacharel; ella mantem a disciplina n'um Estado bem organisado; e a mim garantia-me a tranquillidade dos domingos, o uso d'alguma roupa branca, e vinte mil reis mensaes.

N?o posso negar, porém, que n'esse tempo eu era ambicioso-como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lepido Couceiro. N?o que me revolvesse o peito o appetite heroico de dirigir, do alto d'um throno, vastos rebanhos humanos; n?o que a minha louca alma jámais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida d'um correio choitando;-mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com Champagne, apertar a m?o mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, n'um extasi mudo, sobre o seio fresco de Venus. Oh! mo?os que vos dirigieis vivamente a S. Carlos, atabafados em paletots caros onde alvejava a gravata de soirée! Oh! tipoias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os touros-quantas vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os meus vinte mil reis por mez e o meu geito encolhido de engui?o me excluiam para sempre d'essas alegrias sociaes vinha-me ent?o ferir o peito-como uma frecha que se crava n'um tronco, e fica muito tempo vibrando!

Ainda assim, eu n?o me considerava sombriamente um ?pária?. A vida humilde tem do?uras: é grato, n'uma manh? de sol alegre, com o guardanapo ao pesco?o, diante do bife de grelha, desdobrar o Diario de Noticias; pelas tardes de ver?o, nos bancos gratuitos do Passeio, gozam-se suavidades de idyllio; é saboroso á noite no Martinho, sorvendo aos goles um café, ouvir os verbosos injuriar a patria... Depois, nunca fui excessivamente infeliz-porque n?o tenho imagina??o: n?o me consumia, rondando e almejando em torno de paraisos ficticios, nascidos da minha propria alma desejosa como nuvens da evapora??o d'um lago; n?o suspirava, olhando as lucidas estrellas, por um amor á Romeo, ou por uma gloria social á Camors. Sou um positivo. Só aspirava ao racional, ao tangivel, ao que já f?ra alcan?ado por outros no meu bairro, ao que é accessivel ao bacharel. E ia-me resignando, como quem a uma table d'h?te mastiga a bucha de p?o secco á espera que lhe chegue o prato rico da Charlotte russe. As felicidades haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia como portuguez e como constitucional:-pedia-as todas as noites a Nossa Senhora das D?res, e comprava decimos da loteria.

No entanto procurava distrahir-me. E como as circumvolu??es do meu cerebro me n?o habilitavam a comp?r odes, á maneira de tantos outros ao meu lado que se desforravam assim do tedio da profiss?o; como o meu ordenado, paga a casa e o tabaco, me n?o permittia um vicio-tinha tomado o habito discreto de comprar na feira da Ladra antigos volumes desirmanados, e á noite, no meu quarto, repastava-me d'essas leituras curiosas. Eram sempre obras de titulos ponderosos: Galera da Innocencia, Espelho Milagroso, Tristeza dos Mal Desherdados... O typo venerando, o papel amarellado com picadas de tra?a, a grave encaderna??o freiratica, a fitinha verde marcando a pagina-encantavam-me! Depois, aquelles dizeres ingenuos em letra gorda davam uma pacifica??o a todo o meu sêr, sensa??o comparavel á paz penetrante d'uma velha cêrca de mosteiro, na quebrada d'um valle, por um fim suave de tarde, ouvindo o correr d'agua triste...

Uma noite, ha annos, eu come?ára a lêr, n'um d'esses in-folios vetustos, um capitulo intitulado Brecha das Almas; e ia cahindo n'uma somnolencia grata, quando este periodo singular se me destacou do tom neutro e apagado da pagina, com o relevo d'uma medalha d'ouro nova brilhando sobre um tapete escuro: copío textualmente:

?No fundo da China existe um Mandarim mais rico que todos os reis de que a Fabula ou a Historia contam. D'elle nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a sêda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedaes infindaveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Elle soltará apenas um suspiro, n'esses confins da Mongolia. Será ent?o um cadaver: e tu verás a teus pés mais ouro do que póde sonhar a ambi??o d'um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha??

* * *

Estaquei, assombrado, diante da pagina aberta: aquella interroga??o ?homem mortal, tocarás tu a campainha?? parecia-me facêta, picaresca, e todavia perturbava-me prodigiosamente. Quiz lêr mais; mas as linhas fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que deixavam, d'uma lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a interpella??o estranha-?tocarás tu a compainha??

Se o volume fosse d'uma honesta edi??o Michel-Levy, de capa amarella, eu, que por fim n?o me achava perdido n'uma floresta de ballada allem?, e podia da minha sacada vêr branquejar á luz do gaz o correame da patrulha-teria simplesmente fechado o livro, e estava dissipada a allucina??o nervosa. Mas aquelle sombrio in-folio parecia estalar magia; cada letra affectava a inquietadora configura??o d'esses signaes da velha cabala, que encerram um attributo fatidico; as virgulas tinham o retorcido petulante de rabos de diabinhos, entrevistos n'uma alvura de luar; no ponto d'interroga??o final eu via o pavoroso gancho com que o Tentador vai fisgando as almas que adormeceram sem se refugiar na inviolavel cidadella da Ora??o!... Uma influencia sobrenatural apoderando-se de mim, arrebatava-me devagar para fóra da realidade, do raciocinio: e no meu espirito foram-se formando duas vis?es-d'um lado um Mandarim, decrepito, morrendo sem d?r, longe, n'um kiosque chinez, a um ti-li-tin de campainha; do outro toda uma montanha de ouro scintillando aos meus pés! Isto era t?o nitido, que eu via os olhos obliquos do velho personagem embaciarem-se, como cobertos d'uma tenue camada de pó; e sentia o fino tinir de libras rolando juntas. E immovel, arripiado, cravava os olhos ardentes na campainha, pousada pacatamente diante de mim sobre um diccionario francez-a campainha prevista, citada no mirifico in-folio...

Foi ent?o que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e metallica me disse, no silencio:

-Vamos, Theodoro, meu amigo, estenda a m?o, toque a campainha, seja um forte!

O abat-jour verde da vela punha uma penumbra em redor. Ergui-o, a tremer. E vi, muito pacificamente sentado, um individuo corpulento, todo vestido de preto, de chapéo alto, com as duas m?os cal?adas de luvas negras gravemente apoiadas ao cabo d'um guarda-chuva. N?o tinha nada de phantastico. Parecia t?o contemporaneo, t?o regular, t?o classe-média como se viesse da minha reparti??o...

Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e duras; o nariz brusco, d'um aquilino formidavel, apresentava a express?o rapace e atacante d'um bico d'aguia; o córte dos labios, muito firme, fazia-lhe como uma bocca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam dois clar?es de tiro, partindo subitamente d'entre as sar?as tenebrosas das sobrancelhas unidas; era livido-mas, aqui e além na pelle, corriam-lhe raia??es sanguineas como n'um velho marmore phenicio.

Veio-me á idéa de repente que tinha diante de mim o Diabo: mas logo todo o meu raciocinio se insurgiu resolutamente contra esta imagina??o. Eu nunca acreditei no Diabo-como nunca acreditei em Deus. Jámais o disse alto, ou o escrevi nas gazetas, para n?o descontentar os poderes publicos, encarregados de manter o respeito por taes entidades: mas que existam estes dois personagens, velhos como a Substancia, rivaes bonacheir?es, fazendo-se mutuamente pirra?as amaveis,-um de barbas nevadas e tunica azul, na toilette do antigo Jove, habitando os altos luminosos, entre uma c?rte mais complicada que a de Luiz XIV; e o outro enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chammas inferiores, n'uma imita??o burgueza do pitoresco Plut?o-n?o acredito. N?o, n?o acredito! Céo e Inferno s?o concep??es sociaes para uso da plebe-e eu perten?o á classe-média. Rezo, é verdade, a Nossa Senhora das D?res: porque, assim como pedi o favor do senhor doutor para passar no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil reis, implorei a benevolencia do senhor deputado; igualmente para me subtrahir á tisica, á angina, á navalha de ponta, á febre que vem da sargeta, á casca de laranja escorregadia onde se quebra a perna, a outros males publicos, necessito ter uma protec??o extra-humana. Ou pelo rapa-pé ou pelo incensador o homem prudente deve ir fazendo assim uma serie de sabias adula??es desde a Arcada até ao Paraiso. Com um compadre no bairro, e uma comadre mystica nas Alturas-o destino do bacharel está seguro.

Por isso, livre de torpes supersti??es, disse familiarmente ao individuo vestido de negro:

-Ent?o, realmente, aconselha-me que toque a campainha?

Elle ergueu um pouco o chapéo, descobrindo a fronte estreita, enfeitada d'uma gaforinha crespa e negrejante como a do fabuloso Alcides, e respondeu, palavra a palavra:

-Aqui está o seu caso, estimavel Theodoro. Vinte mil reis mensaes s?o uma vergonha social! Por outro lado, ha sobre este globo coisas prodigiosas: ha vinhos de Borgonha, como por exemplo o Romanée-Conti de 58 e o Chambertin de 61, que custam, cada garrafa, de dez a onze mil reis; e quem bebe o primeiro calix, n?o hesitará, para beber o segundo, em assassinar seu pai... Fabricam-se em Paris e em Londres carruagens de t?o suaves molas, de t?o mimosos estofos, que é preferivel percorrer n'ellas o Campo Grande, a viajar, como os antigos deuses, pelos céos, sobre os f?fos coxins das nuvens... N?o farei á sua instruc??o a offensa de o informar que se mobilam hoje casas, d'um estylo e d'um conforto, que s?o ellas que realisam superiormente esse regalo ficticio, chamado outr'ora a ?Bemaventuran?a?. N?o lhe fallarei, Theodoro, d'outros gozos terrestres: como, por exemplo, o Theatro do Palais Royal, o baile Laborde, o Café Anglais... Só chamarei a sua atten??o para este facto: existem sêres que se chamam Mulheres-differentes d'aquelles que conhece, e que se denominam Femeas. Estes sêres, Theodoro, no meu tempo, a paginas 3 da Biblia, apenas usavam exteriormente uma folha de vinha. Hoje, Theodoro, é toda uma symphonia, todo um engenhoso e delicado poema de rendas, baptistes, setins, fl?res, joias, cachemiras, gazes e velludos... Comprehende a satísfa??o inenarravel que haverá, para os cinco dedos de um christ?o, em percorrer, palpar estas maravilhas macias;-mas tambem percebe que n?o é com o troco d'uma placa honesta de cinco tost?es que se pagam as contas d'estes cherubins... Mas ellas possuem melhor, Theodoro: s?o os cabellos c?r do ouro ou c?r da treva, tendo assim nas suas tran?as a apparencia emblematica das duas grandes tenta??es humanas-a fome do metal precioso e o conhecimento do absoluto transcendente. E ainda teem mais: s?o os bra?os c?r de marmore, d'uma frescura de lirio orvalhado; s?o os seios, sobre os quaes o grande Praxiteles modelou a sua Ta?a, que é a linha mais pura e mais ídeal da Antiguidade.... Os seios, outr'ora (na idéa d'esse ingenuo Anci?o que os formou, que fabricou o mundo, e de quem uma inimizade secular me veda de pronunciar o nome), eram destinados á nutri??o augusta da humanidade; socegue porém, Theodoro; hoje nenhuma maman racional os exp?e a essa func??o deterioradora e severa; servem só para resplandecer, aninhados em rendas, ao gaz das soirées,-e para outros usos secretos. As conveniencias impedem-me de proseguir n'esta exposi??o radiosa das bellezas, que constituem o Fatal Feminino... De resto as suas pupillas já rebrilham.... Ora todas estas coisas, Theodoro, est?o para além, infinitamente para além dos seus vinte mil reís por mez... Confesse, ao menos, que estas palavras teem o veneravel sello da verdade!...

Eu murmurei com as faces abrasadas:

-Teem.

E a sua voz proseguiu, paciente e suave:

-Que me diz a cento e cinco, ou cento e seis mil contos? Bem sei, é uma bagatella... Mas emfim, constituem um come?o; s?o uma ligeira habilita??o para conquistar a felicidade. Agora pondere estes factos: o Mandarim, esse Mandarim do fundo da China, está decrepito e está gottoso: como homem, como funccionario do celeste imperio, é mais inutil em Pekin e na humanidade, que um seixo na bocca d'um c?o esfomeado. Mas a transforma??o da substancia existe: garanto-lh'a eu, que sei o segredo das coisas... Porque a terra é assim: recolhe aqui um homem apodrecido, e restitue-o além ao conjuncto das fórmas como vegetal vi?oso. Bem póde ser que elle, inutil como Mandarim no Imperio do Meio, vá ser util n'outra terra como rosa perfumada ou saboroso rep?lho. Matar, meu filho, é quasi sempre equilibrar as necessidades universaes. é eliminar aqui a excrescencia para ir além supprir a falta. Penetre-se d'estas solidas philosophias. Uma pobre costureira de Londres anceia por vêr florir, na sua trapeira, um vaso cheio de terra negra: uma fl?r consolaria aquella desherdada; mas na disposi??o dos sêres, infelizmente, n'esse momento, a substancia que lá devia ser rosa é aqui na Baixa homem d'Estado... Vem ent?o o fadista de navalha aberta, e fende o estadista; o enxurro leva-lhe os intestinos; enterram-no, com tipoias atraz; a materia come?a a desorganisar-se, mistura-se á vasta evolu??o dos atomos-e o superfluo homem de governo vai alegrar, sob a fórma de amor perfeito, a agua furtada da loura costureira. O assassino é um philanthropo! Deixe-me resumir, Theodoro: a morte d'esse velho Mandarim idiota traz-lhe á algibeira alguns milhares de contos. Póde desde esse momento dar pontapés nos poderes publicos: medite na intensidade d'este gozo! é desde logo citado nos jornaes: reveja-se n'esse maximo da gloria humana! E agora note: é só agarrar a campainha, e fazer ti-li-tin. Eu n?o sou um barbaro: comprehendo a repugnancia d'um gentleman em assassinar um contemporaneo: o espirrar do sangue suja vergonhosamente os punhos, e é repulsivo o agonisar d'um corpo humano. Mas aqui, nenhum d'esses espectaculos torpes... é como quem chama um criado... E s?o cento e cinco ou cento e seis mil contos; n?o me lembro, mas tenho-o nos meus apontamentos... O Theodoro n?o duvída de mim. Sou um cavalheiro:-provei-o, quando, fazendo a guerra a um tyranno na primeira insurrei??o da justi?a, me vi precipitado d'alturas que nem Vossa Senhoria concebe... Um trambulh?o consideravel, meu caro senhor! Grandes desgostos! O que me consola é que o OUTRO está tambem muito abalado: porque, meu amigo, quando um Jehovah tem apenas contra si um Satanaz, tira-se bem de difficuldades mandando carregar mais uma legi?o d'archanjos; mas quando o inimigo é o homem, armado d'uma penna de pato e d'um caderno de papel branco-está perdido... Emfim s?o seis mil contos. Vamos, Theodoro, ahi tem a campainha, seja um homem.

Eu sei o que deve a si mesmo um christ?o. Se este personagem me tivesse levado ao cume d'uma montanha na Palestina, por uma noite de lua cheia, e ahi, mostrando-me cidades, ra?as e imperios adormecidos, sombriamente me dissesse:-?Mata o Mandarim, e tudo o que vês em valle e collina será teu?,-eu saberia replicar-lhe, seguindo um exemplo illustre, e erguendo o dedo ás profundidades constelladas:-?O meu reino n?o é d'este mundo!? Eu conhe?o os meus authores. Mas eram cento e tantos mil contos, offerecidos á luz d'uma vela de stearina, na travessa da Concei??o, por um sujeito de chapéo alto, apoiado a um guarda-chuva...

Ent?o n?o hesitei. E, de m?o firme, repeniquei a campainha. Foi talvez uma illus?o; mas pareceu-me que um sino, de bocca t?o vasta como o mesmo céo, badalava na escurid?o, através do Universo, n'um tom temeroso que decerto foi acordar sóes que faziam né-né e planetas pan?udos resonando sobre os seus eixos...

O individuo levou um dedo á palpebra, e limpando a lagrima que ennevoára um instante o seu olho rutilante:

-Pobre Ti-Chin-Fú!...

-Morreu?

-Estava no seu jardim, socegado, armando, para o lan?ar ao ar, um papagaio de papel, no passatempo honesto d'um Mandarim retirado,-quando o surprehendeu este ti-li-tin da campainha. Agora jaz á beira d'um arroio cantante, todo vestido de sêda amarella, morto, de pan?a ao ar, sobre a relva verde: e nos bra?os frios tem o seu papagaio de papel, que parece t?o morto como elle. ámanh? s?o os funeraes. Que a sabedoria de Confucio, penetrando-o, ajude a bem emigrar a sua alma!

E o sujeito, erguendo-se, tirou respeitosamente o chapéo, sahiu, com o seu guarda-chuva debaixo do bra?o.

Ent?o, ao sentir bater a porta, afigurou-se-me que emergia d'um pesadêlo. Saltei ao corredor. Uma voz jovial fallava com a Madame Marques; e a cancella da escada cerrou-se subtilmente.

-Quem é que sahiu agora, ó D. Augusta?-perguntei, n'um suor.

-Foi o Cabritinha que vai um bocadinho á batota...

Voltei ao quarto: tudo lá repousava tranquillo, identico, real. O in-folio ainda estava aberto na pagina temerosa. Reli-a: agora parecia-me apenas a prosa antiquada d'um moralista caturra; cada palavra se tornára como um carv?o apagado...

Deitei-me:-e sonhei que estava longe, para além de Pekin, nas fronteiras da Tartaria, no kìosque d'um convento de Lamas, ouvindo maximas prudentes e suaves que escorriam, com um aroma fino de chá, dos labios de um Buddha vivo.

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