Login to MoboReader
icon 0
icon TOP UP
rightIcon
icon Reading History
rightIcon
icon Log out
rightIcon
icon Get the APP
rightIcon
A Cidade e as Serras

A Cidade e as Serras

Eca de Queiros

5.0
Comment(s)
38
View
16
Chapters

A Cidade e as Serras é um romance de Eça de Queirós, publicado em 1901, pertencente à última fase do escritor, onde se afasta do realismo e abandona a crítica pesada que fazia à sociedade portuguesa da época. O próprio título já indica sobre o enredo. Nesse livro, Queirós faz uma comparação entre a vida módica e agitada de Paris e a vida tranquila e pacata na cidadeserrana de Tormes.

Chapter 1 1

O meu amigo Jacintho nasceu n'um palacio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de corti?a e d'olival. No Alemtejo, pela Extremadura, atravez das duas Beiras, densas sebes ondulando por collina e valle, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos d'esta velha familia agricola que já entulhava gr?o e plantava cepa em tempos d'el-rei D. Diniz. A sua quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma serra. Entre o Tua e o Tinhela, por cinco fartas legoas, todo o torr?o lhe pagava f?ro.

E cerrados pinheiraes seus negrejavam desde Arga até ao mar d'Ancora. Mas o palacio onde Jacintho nascêra, e onde sempre habitára, era em Paris, nos Campos Elyseos, n.o 202. Seu av?, aquelle gordissimo e riquissimo Jacintho a quem chamavam em Lisboa o D. Gali?o, descendo uma tarde pela travessa da Trabuqueta, rente d'um muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou n'uma casca de laranja e desabou no lagedo. Da portinha da horta sahia n'esse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baet?o verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma for?a facil, levantou o enorme Jacintho-até lhe apanhou a bengala de cast?o d'ouro que rolára para o lixo. Depois, demorando n'elle os olhos pestanudos e pretos:

-Oh Jacintho Gali?o, que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar pelas pedras?

E Jacintho, aturdido e deslumbrado, reconheceu o snr. Infante D. Miguel!

Desde essa tarde amou aquelle bom Infante como nunca amára, apesar de t?o guloso, o seu ventre, e apesar de t?o devoto o seu Deus! Na sala nobre da sua casa (á Pampulha) pendurou sobre os damascos o retrato do ?seu Salvador?, enfeitado de palmitos como um retabulo, e por baixo a bengala que as magnanimas m?os reaes tinham erguido do lixo. Emquanto o adoravel, desejado Infante penou no desterro de Vienna, o barrigudo senhor corria, sacudido na sua sege amarella, do botequim do Zé-Maria em Belem á botica do Placido nos Algibebes, a gemer as saudades do anginho, a tramar o regresso do anginho. No dia, entre todos bemdito, em que a Perola appareceu á barra com o Messias, engrinaldou a Pampulha, ergueu no Caneiro um monumento de papel?o e lona onde D. Miguel, tornado S. Miguel, branco, d'aureola e azas de Archanjo, furava de cima do seu corcel d'Alter o Drag?o do Liberalismo, que se estorcia vomitando a Carta. Durante a guerra com o ?outro, com o pedreiro livre? mandava recoveiros a Santo Thyrso, a S. Gens, levar ao Rei fiambres, caixas de d?ce, garrafas do seu vinho de Tarrafal, e bolsas de retroz atochadas de pe?as que elle ensaboava para lhes avivar o ouro. E quando soube que o snr. D. Miguel, com dois velhos bahus amarrados sobre um macho, tomára o caminho de Sines e do final desterro-Jacintho Gali?o correu pela casa, fechou todas as janellas como n'um luto, berrando furiosamente:

-Tambem cá n?o fico! tambem cá n?o fico!

N?o, n?o queria ficar na terra perversa d'onde partia, esbulhado e escorra?ado, aquelle Rei de Portugal que levantava na rua os Jacinthos! Embarcou para Fran?a com a mulher, a snr.a D. Angelina Fafes (da t?o fallada casa dos Fafes da Avellan); com o filho, o 'Cinthinho, menino amarellinho, mollesinho, coberto de caró?os e leicen?os; com a aia e com o moleque. Nas costas da Cantabria o paquete encontrou t?o rijos mares que a snr.a D. Angelina, esguedelhada, de joelhos na enxerga do beliche, prometteu ao Senhor dos Passos d'Alcantara uma cor?a d'espinhos, de ouro, com as gottas de sangue em rubis do Pegu. Em Bayonna, onde arribaram, 'Cinthinho teve ithericia. Na estrada d'Orleans, n'uma noite agreste, o eixo da berlinda em que jornadeavam partiu, e o nedio senhor, a delicada senhora da casa da Avellan, o menino, marcharam tres horas na chuva e na lama do exilio até uma aldeia, onde, depois de baterem como mendigos a portas mudas, dormiram nos bancos d'uma taberna. No ?Hotel dos Santos Padres?, em Paris, soffreram os terrores d'um fogo que rebentára na cavalhari?a, sob o quarto de D. Gali?o, e o digno fidalgo, rebolando pelas escadas em camisa, até ao pateo, enterrou o pé nú numa lasca de vidro. Ent?o ergueu amargamente ao céo o punho cabelludo, e rugiu:

-Irra! é de mais!

Logo n'essa semana, sem escolher, Jacintho Gali?o comprou a um Principe polaco, que depois da tomada de Varsovia se mettera fradecartuxo, aquelle palacete dos Campos Elyseos, n.o 202. E sob o pesado ouro dos seus estuques, entre as suas ramalhudas sedas se enconchou, descan?ando de tantas agita??es, n'uma vida de pachorra e de boa mesa, com alguns companheiros d'emigra??o (o desembargador Nuno Velho, o conde de Rabacena, outros menores), até que morreu de indigest?o, d'uma lampreia d'escabeche que lhe mandára o seu procurador em Monte-mór. Os amigos pensavam que a snr.a D. Angelina Fafes voltaria ao reino. Mas a boa senhora temia a jornada, os mares, as cale?as que racham. E n?o se queria separar do seu Confessor, nem do seu Medico, que t?o bem lhe comprehendiam os escrupulos e a asthma.

-Eu, por mim, aqui fico no 202 (declarára ella), ainda que me faz falta a boa agua d'Alcolena... O 'Cinthinho, esse, em crescendo, que decida.

O 'Cinthinho crescèra. Era um mo?o mais esguio e livido que um cirio, de longos cabellos corredios, narigudo, silencioso, encafuado em roupas pretas, muito largas e bambas; de noite, sem dormir, por causa da tosse e de suffoca??es, errava em camisa com uma lamparina atravez do 202; e os creados na copa sempre lhe chamavam a Sombra. N'essa sua mudez e indecis?o de sombra surdira, ao fim do luto do papá, o gosto muito vivo de tornear madeiras ao torno: depois, mais tarde, com a melada fl?r dos seus vinte annos, brotou n'elle outro sentimento, de desejo e de pasmo, pela filha do desembargador Velho, uma menina redondinha como uma r?la, educada n'um convento de Paris, e t?o habilidosa que esmaltava, dourava, concertava relogios e fabricava chapéos de feltro. No outomno de 1851, quando já se desfolhavam os castanheiros dos Campos Elyseos, o 'Cinthinho cuspilhou sangue. O medico, acarinhando o queixo e com uma ruga seria na testa immensa, aconselhou que o menino abalasse para o golfo Juan ou para as tepidas areias d'Arcachon.

'Cinthinho porém, no seu afèrro de sombra, n?o se quiz arredar da Therezinha Velho, de quem se tornára, atravez de Paris, a muda, tard?nha sombra. Como uma sombra, casou; deu mais algumas voltas ao torno; cuspiu um resto de sangue; e passou, como uma sombra.

Tres mezes e tres dias depois do seu enterro o meu Jacintho nasceu.

* * *

Desde o ber?o, onde a avó espalhava funcho e ambar para afugentar a Sorte-Ruim, Jacintho medrou com a seguran?a, a rijeza, a seiva rica d'um pinheiro das dunas.

N?o teve sarampo e n?o teve lombrigas. As Letras, a Taboada, o Latim entraram por elle t?o facilmente como o sol por uma vidra?a. Entre os camaradas, nos pateos dos collegios, erguendo a sua espada de lata e lan?ando um brado de commando, foi logo o vencedor, o Rei que se adula, e a quem se cede a fructa das merendas. Na edade em que se lê Balzac e Musset nunca atravessou os tormentos da sensibilidade;-nem crepusculos quentes o retiveram na solid?o d'uma janella, padecendo d'um desejo sem fórma e sem nome. Todos os seus amigos (eramos tres, contando o seu velho escudeiro preto, o Grillo) lhe conservaram sempre amizades puras e certas-sem que jámais a participa??o do seu luxo as avivasse ou fossem desanimadas pelas evidencias do seu egoismo. Sem cora??o bastante forte para conceber um amor forte, e contente com esta incapacidade que o libertava, do amor só experimentou o mel-esse mel que o amor reserva aos que o recolhem, á maneira das abelhas, com ligeireza, mobilidade e cantando. Rijo, rico, indifferente ao Estado e ao Governo dos Homens, nunca lhe conhecemos outra ambi??o além de comprehender bem as Ideias Geraes; e a sua intelligencia, nos annos alegres de escólas e controversias, círculava dentro das Philosophias mais densas como enguia lustrosa na agua limpa d'um tanque. O seu valor, genuino, de fino quilate, nunca foi desconhecido, nem desapreciado; e toda a opini?o, ou mera facecia que lan?asse, logo encontrava uma aragem de sympathia e concordancia que a erguia, a mantinha emballada e rebrilhando nas alturas. Era servido pelas cousas com docilidade e carinho;-e n?o recordo que jamais lhe estalasse um bot?o da camisa, ou que um papel maliciosamente se escondesse dos seus olhos, ou que ante a sua vivacidade e pressa uma gaveta perfida emperrasse. Quando um dia, rindo com descrido riso da Fortuna e da sua Roda, comprou a um sachrist?o hespanhol um Decimo de Loteria, logo a Fortuna, ligeira e ridente sobre a sua Roda, correu n'um fulgor, para lhe trazer quatro centas mil pesetas. E no ceu as Nuvens, pejadas e lentas, se avistavam Jacintho sem guarda chuva, retinham com reverencia as suas aguas até que elle passasse... Ah! o ambar e o funcho da snr.a D. Angelina tinham escorra?ado do seu destino, bem triumphalmente e para sempre, a Sorte-Ruim! A amoravel avó (que eu conheci obesa, com barba) costumava citar um soneto natalicio do desembargador Nunes Velho contendo um verso de boa li??o:

Sabei, senhora, que esta Vida é um rio...

Pois um rio de ver?o, manso, translucido, harmoniosamente estendido sobre uma areia macia e alva, por entre arvoredos fragrantes e ditosas aldeias, n?o offereceria áquelle que o descesse n'um barco de cedro, bem toldado e bem almofadado, com fructas e Champagne a refrescar em gelo, um Anjo governando ao leme, outros Anjos puxando á sirga, mais seguran?a e do?ura do que a Vida offerecia ao meu amigo Jacintho.

Por isso nós lhe chamavamos ?o Principe da Gran-Ventura?!

* * *

Jacintho e eu, José Fernandes, ambos nos encontramos e acamaradamos em Paris, nas Escólas do Bairro Latino-para onde me mandára meu bom tio Affonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande, quando aquelles malvados me riscaram da Universidade por eu ter esborrachado, n'uma tarde de prociss?o, na Sophia, a cara sordida do dr. Paes Pitta.

Ora n'esse tempo Jacintho concebêra uma Ideia... Este Principe concebêra a Ideia de que ?o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilisado?. E por homem civilisado o meu camarada entendia aquelle que, robustecendo a sua for?a pensante com todas as no??es adquiridas desde Aristoteles, e multiplicando a potencia corporal dos seus org?os com todos os mechanismos inventados desde Theramenes, creador da roda, se torna um magnifico Ad?o, quasí omnipotente, quasí omnisciente, e apto portanto a recolher dentro d'uma sociedade e nos limites do Progresso (tal como elle se comportava em 1875) todos os gozos e todos os proveitos que resultam de Saber e de Poder... Pelo menos assim Jacintho formulava copiosamente a sua Ideia, quando conversavamos de fins e destinos humanos, sorvendo bocks poeirentos, sob o toldo das cervejarias philosophicas, no Boulevard Saint-Michel.

Este conceito de Jacintho impressionára os nossos camaradas de cenaculo, que tendo surgido para a vida intellectual, de 1866 a 1875, entre a batalha de Sadowa e a batalha de Sedan, e ouvindo constantemente, desde ent?o, aos technicos e aos philosophos, que f?ra a Espingarda-de-agulha que vencêra em Sadowa e f?ra o Mestre-de-escóla quem vencêra em Sedan, estavam largamente preparados a acreditar que a felicidade dos individuos, como a das na??es, se realisa pelo illimitado desenvolvimento da Mechanica e da Erudi??o. Um d'esses mo?os mesmo, o nosso inventivo Jorge Carlande, reduzíra a theoria de Jacintho, para lhe facilitar a circula??o e lhe condensar o brilho, a uma fórma algebrica:

Summa sciencia }

X Summa potencia

Summa felicidade

E durante dias, do Odeon á Sorbonna, foi louvada pela mocidade positiva a Equa??o Metaphysica de Jacintho.

Para Jacintho, porém, o seu conceito n?o era meramente metaphysico e lan?ado pelo gozo elegante de exercer a raz?o especulativa:-mas constituia uma regra, toda de realidade e de utilidade, determinando a conducta, modalisando a vida. E já a esse tempo, em concordancia com o seu preceito-elle se surtira da Pequena Encyclopedia dos Conhecimentos Universaes em setenta e cinco volumes e installára, sobre os telhados do 202, n'um mirante envidra?ado, um telescopio. Justamente com esse telescopio me tornou elle palpavel a sua ideia, n'uma noite de agosto, de molle e dormente calor. Nos céos remotos lampejavam relampagos languidos. Pela Avenida dos Campos Elyseos, os fiacres rolavam para as frescuras do Bosque, lentos, abertos, can?ados, transbordando de vestidos claros.

-Aqui tens tu, Zé Fernandes, (come?ou Jacintho, encostado á janella do mirante) a theoria que me governa, bem comprovada. Com estes olhos que recebemos da Madre natureza, lestos e s?os, nós podemos apenas distinguir além, atravez da Avenida, n'aquella loja, uma vidra?a alumiada. Mais nada! Se eu porém aos meus olhos juntar os dois vidros simples d'um binoculo de corridas, percebo, por traz da vidra?a, presuntos, queijos, boi?es de gelêa e caixas de ameixa sêcca. Concluo portanto que é uma mercearia. Obtive uma no??o; tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vês só o luzir da vidra?a, uma vantagem positiva. Se agora, em vez d'estes vidros simples, eu usasse os do meu telescopio, de composi??o mais scientifica, poderia avistar além, no planeta Marte, os mares, as neves, os canaes, o recorte dos golphos, toda a geographia d'um astro que circula a milhares de leguas dos Campos Elyseos. é outra no??o, e tremenda! Tens aqui pois o olho primitivo, o da Natureza, elevado pela Civilisa??o á sua maxima potencia de vis?o. E desde já, pelo lado do olho portanto, eu, civilisado, sou mais feliz que o incivilisado, porque descubro realidades do Universo que elle n?o suspeita e de que está privado. Applica esta prova a todos os org?os e comprehendes o meu principio. Emquanto á intelligencia, e á felicidade que d'ella se tira pela incan?avel accumula??o das no??es, só te peco que compares Renan e o Grillo... Claro é portanto que nos devemos cercar de Civilisa??o nas maximas propor??es para gosar nas maximas propor??es a vantagem de viver. Agora concordas, Zé Fernandes?

N?o me parecia irrecusavelmente certo que Renan fosse mais feliz que o Grillo; nem eu percebia que vantagem espiritual ou temporal se c?lha em distinguir atravez do espa?o manchas n'um astro, ou atravez da Avenida dos Campos Elyseos presuntos n'uma vidra?a. Mas concordei, porque sou bom, e nunca desalojarei um espirito do conceito onde elle encontra seguran?a, disciplina e motivo de energia. Desabotoei o collete, e lan?ando um gesto para o lado dos cafés e das luzes:

-Vamos ent?o beber, nas maximas propor??es, brandy and soda, com gelo!

Por uma conclus?o bem natural, a ideia de Civilisa??o, para Jacintho, n?o se separava da imagem de Cidade, d'uma enorme Cidade, com todos os seus vastos org?os funccionando poderosamente. Nem este meu super-civilisado amigo comprehendia que longe de Armazens servidos por tres mil caixeiros; e de Mercados onde se despejam os vergeis e lezirias de trinta provincias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de Fabricas fumegando com ancia, inventando com ancia; e de Bibliothecas abarrotadas, a estalar, com a papelada dos seculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, por baixo e por cima, de fios de telegraphos, de fios de telephones, de canos de gazes, de canos de fezes; e da fila atroante dos omnibus, tramways, carro?as, velocipedes, calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milh?es d'uma vaga humanidade, fervilhando, a offegar, atravez da Policia, na busca dura do p?o ou sob a illus?o do gozo-o homem do seculo XIX podesse saborear, plenamente, a delicia de viver!

Quando Jacintho, no seu quarto do 202, com as varandas abertas sobre os lilazes, me desenrolava estas imagens, todo elle crescia, illuminado. Que crea??o augusta, a da Cidade! Só por ella, Zé-Fernandes, só por ella, póde o homem soberbamente affirmar a sua alma!...

-Oh Jacintho, e a religi?o? Pois a religi?o n?o prova a alma?

Elle encolhia os hombros. A religi?o! A religi?o é o desenvolvimento sumptuoso de um instincto rudimentar, commum a todos os brutos, o terror. Um c?o lambendo a m?o do dono, de quem lhe vem o osso ou o chicote, já constitue toscamente um devoto, o consciente devoto, prostrado em rezas ante o Deus que distribue o céo ou o inferno!... Mas o telephone! o phonographo!

-Ahi tens tu, o phonographo!... Só o phonographo, Zé Fernandes, me faz verdadeiramente sentir a minha superioridade de sêr pensante e me separa do bicho. Acredita, n?o ha sen?o a Cidade, Zé Fernandes, n?o ha sen?o a Cidade!

E depois (accrescentava) só a Cidade lhe dava a sensa??o, t?o necessaria á vida como o calor, da solidariedade humana. E no 202, quando considerava em redor, nas densas massas do casario de Paris, dois milh?es de sêres arquejando na obra da Civilisa??o (para manter na natureza o dominio dos Jacinthos!) sentia um socego, um conchego, só comparaveis ao do peregrino, que, ao atravessar o deserto, se ergue no seu dromedario, e avista a longa fila da caravana marchando, cheia de lumes e de armas...

Eu murmurava, impressionado:

-Caramba!

Ao contrario no campo, entre a inconsciencia e a impassibilidade da Natureza, elle tremia com o terror da sua fragilidade e da sua solid?o. Estava ahi como perdido n'um mundo que lhe n?o fosse fraternal; nenhum silvado encolheria os espinhos para que elle passasse; se gemesse com fome nenhuma arvore, por mais carregada, lhe estenderia o seu fructo na ponta compassiva d'um ramo. Depois, em meio da Natureza, elle assistia á subita e humilhante inutilisa??o de todas as suas faculdades superiores. De que servia, entre plantas e bichos-ser um Genio ou ser um Santo? As searas n?o comprehendem as Georgicas; e f?ra necessario o socorro ancioso de Deus, e a invers?o de todas as leis naturaes, e um violento milagre para que o lobo de Agubio n?o devorasse S. Francisco d'Assis, que lhe sorria e lhe estendia os bra?os e lhe chamava ?meu irm?o lobo?! Toda a intellectualidade, nos campos, se esterilisa, e só resta a bestialidade. N'esses reinos crassos do Vegetal e do Animal duas unicas func??es se mantêm vivas, a nutritiva e a procreadora. Isolada, sem occupa??o, entre focinhos e raizes que n?o cessam de sugar e de pastar, suffocando no calido bafo da universal fecunda??o, a sua pobre alma toda se engelhava, se reduzia a uma migalha d'alma, uma fagulhasinha espiritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de materia; e n'essa materia dois instinctos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e o de gerar. Ao cabo de uma semana rural, de todo o seu sêr t?o nobremente composto só restava um estomago e por baixo um phallus! A alma? Sumida sob a besta. E necessitava correr, reentrar na Cidade, mergulhar nas ondas lustraes da Civilisa??o, para largar n'ellas a crosta vegetativa, e resurgir re-humanisado, de novo espiritual e Jacinthico!

E estas requintadas metaphoras do meu amigo exprimiam sentimentos reaes-que eu testemunhei, que muito me divertiram, no unico passeio que fizemos ao campo, á bem amavel e bem sociavel floresta de Montmorency. Oh delicias d'entremez, Jacintho entre a Natureza! Logo que se afastava dos pavimentos de madeira, do macadam, qualquer ch?o que os seus pés calcassem o enchia de desconfian?a e terror. Toda a relva, por mais crestada, lhe parecia re?umar uma humidade mortal. De sob cada torr?o, da sombra de cada pedra, receava o assalto de lacraus, de viboras, de fórmas rastejantes e viscosas. No silencio do bosque sentia um lugubre despovoamento do Universo. N?o tolerava a familiaridade dos galhos que lhe ro?assem a manga ou a face. Saltar uma sebe era para elle um acto degradante que o retrogradava ao macaco inicial. Todas as fl?res que n?o tivesse já encontrado em jardins, domesticadas por longos seculos de servid?o ornamental, o inquietavam como venenosas. E considerava d'uma melancolia funambulesca certos modos e fórmas do Sêr inanimado, a pressa esperta e v? dos regatinhos, a careca dos rochedos, todas as contors?es do arvoredo e o seu resmungar solemne e tonto.

Depois d'uma hora, n'aquelle honesto bosque de Montmorency, o meu pobre amigo abafava, apavorado, experimentando já esse lento mingoar e sumir d'alma que o tornava como um bicho entre bichos. Só desannuviou quando penetramos no lagêdo e no gaz de Paris-e a nossa vittoria quasi se despeda?ou contra um omnibus retumbante, atulhado de cidad?os. Mandou descer pelos Boulevards, para dissipar, na sua grossa sociabilidade, aquella materialisa??o em que sentia a cabe?a pesada e vaga como a d'um boi. E reclamou que eu o acompanhasse ao theatro das Variedades para sacudir, com os estribilhos da Femme à Papa, o rumor importuno que lhe ficára dos melros cantando nos choupos altos.

Este delicioso Jacintho fizera ent?o vinte e tres annos, e era um soberbo mo?o em quem reapparecêra a for?a dos velhos Jacinthos ruraes. Só pelo nariz, afilado, com narinas quasi transparentes, d'uma mobilidade inquieta, como se andasse fariscando perfumes, pertencia ás delicadezas do seculo XIX. O cabello ainda se conservava, ao modo das éras rudes, crespo e quasi lanigero: e o bigode, como o d'um Celta, cahia em fios sedosos, que elle necessitava aparar e frizar. Todo o seu fato, as espessas gravatas de setim escuro que uma perola prendia, as luvas de anta branca, o verniz das botas, vinham de Londres em caixotes de cedro; e usava sempre ao peito uma fl?r, n?o natural, mas composta destramente pela sua ramalheteira com petalas de fl?res dessemelhantes, cravo, azalea, orchidea ou tulipa, fundidas na mesma haste entre uma leve folhagem de funcho.

* * *

Em 1880, em Fevereiro, n'uma cinzenta e arripiada manh? de chuva, recebi uma carta de meu bom tio Affonso Fernandes, em que, depois de lamenta??es sobre os seus setenta annos, os seus males hemorroidaes, e a pesada gerencia dos seus bens ?que pedia homem mais novo, com pernas mais rijas?-me ordenava que recolhesse á nossa casa de Gui?es, no Douro! Encostado ao marmore partido do fog?o, onde na véspera a minha Nini deixára um espartilho embrulhado no Jornal dos Debates, censurei severamente meu tio que assim cortava em bot?o, antes de desabrochar, a fl?r do meu Saber Juridico. Depois n'um Post-Scriptum elle accrescentava-?O tempo aqui está lindo, o que se póde chamar de rosas, e tua santa tia muito se recommenda, que anda lá pela cozinha, porque vai hoje em trinta e seis annos que casámos, temos cá o abbade e o Quintaes a jantar, e ella quiz fazer uma sopa dourada?.

Deitando uma acha ao lume, pensei como devia estar boa a sopa dourada da tia Vicencia. Ha quantos annos n?o a provava, nem o leit?o assado, nem o arroz de f?rno da nossa casa! Com o tempo assim t?o lindo, já as mimosas do nosso pateo vergariam sob os seus grandes cachos amarellos. Um peda?o de céo azul, do azul de Gui?es, que outro n?o ha t?o lustroso e macio, entrou pelo quarto, alumiou, sobre a poida tristeza do tapete, relvas, ribeirinhos, malmequeres e fl?res de trevo de que meus olhos andavam agoados. E, por entre as bambinellas de sarja, passou um ar fino e forte e cheiroso de serra e de pinheiral.

Assobiando um fado meigo tirei debaixo da cama a minha velha mala, e metti solicitamente entre cal?as e piugas um Tratado de Direito Civil, para aprender emfim, nos vagares da aldeia, estendido sob a faia, as leis que regem os homens. Depois, n'essa tarde, annunciei a Jacintho que partia para Gui?es. O meu camarada recuou com um surdo gemido de espanto e piedade:

-Para Gui?es!... Oh Zé Fernandes, que horror!

E toda essa semana me lembrou solicitamente confortos de que eu me deveria prover para que pudesse conservar, nos ermos silvestres, t?o longe da Cidade, uma pouca d'alma dentro d'um pouco de corpo. ?Leva uma poltrona! Leva a Encyclopedia Geral! Leva caixas de aspargos!...?

Mas para o meu Jacintho, desde que assim me arrancavam da Cidade, eu era arbusto desarraigado que n?o reviverá. A magoa com que me acompanhou ao comboio conviria excellentemente ao meu funeral. E quando fechou sobre mim a portinhola, gravemente, supremamente, como se cerra uma grade de sepultura, eu quasi solucei-com saudades minhas.

Cheguei a Gui?es. Ainda restavam fl?res nas mimosas do nosso pateo; comi com delicias a sopa dourada da tia Vicencia; de tamancos nos pés assisti á ceifa dos milhos. E assim de colheitas a lavras, crestando ao sol das eiras, ca?ando a perdiz nos matos geados, rachando a melancia fresca na poeira dos arraiaes, arranchando a magustos, serandando á candeia, ati?ando fogueiras de S. Jo?o, enfeitando presepios de Natal, por alli me passaram docemente sete annos, t?o atarefados que nunca logrei abrir o Tratado de Direito Civil, e t?o singelos que apenas me recordo quando, em vésperas de S. Nicolau, o abbade cahiu da egua á porta do Braz das Córtes. De Jacintho só recebia raramente algumas linhas, escrevinhadas á pressa por entre o tumulto da Civilisa??o. Depois, n'um Setembro muito quente, ao lidar da vindima, meu bom tio Affonso Fernandes morreu, t?o quietamente, Deus seja louvado por esta gra?a, como se cala um passarinho ao fim do seu bem cantado e bem voado dia. Acabei pela aldeia a roupa do luto. A minha afilhada Joanninha casou na matan?a do porco. Andaram obras no nosso telhado. Voltei a Paris.

Continue Reading

Other books by Eca de Queiros

More

You'll also like

The Mate He Hates

The Mate He Hates

Werewolf

5.0

Warning: This book has high sexual assault displays, but does not support any form of rape. I, Alpha Edward Parker, swear that I will keep you tied to me until I make you pay for what you did to my mate," he swore, gripping my chin in a bruising hold. "Not only will you wish for death, but you will beg for it, and it will be too far from you." I could feel the eyes of the whole pack on us. They probably came to experience a normal wedding, but that couldn't be further from the truth. I was being married off to a groom because he wanted revenge. Tears welled, and I wanted to scream, "I am your mate; I'm the one who saved you, not her." But I knew no one would believe me. I was his mate, how could he not recognize me? Four years ago, Amanda happened to save a total stranger, but due to a string of misunderstandings, her sister took her place. The stranger then promised a vow of betrothal to his savior. Not seeing any use in correcting the error, Amanda allowed it. That was her biggest mistake because the stranger ended up being her own mate. Caught in a web of lies and confusion, she decides to set herself free by speaking the truth. But her plans are thwarted when her sister turns up dead, and she is pinned as the main suspect. A mate out to seek revenge for another, a forced marriage, an underlying plot, a web of lies, and many dark secrets. How can Amanda navigate all these without losing sight of herself? How will she speak the truth when she has already lost her voice and has been destroyed by her own mate?

Chapters
Read Now
Download Book